sábado, março 06, 2010

Aroma de Flanela

Bebia o sabor e aroma da flanela quente e cheia de odores de infância naquelas noites escuras e silenciosas, nas visitas de fim de semana à sua avó velha, bisavó que de nome apenas era, simplesmente, velha.
Não de velha, velha.
Velha de doçura e amor.
Velha de protecção e de rugas que contavam muitas histórias.
Histórias e estórias de uma vida.
De muitas vidas reunidas numa só.
Histórias que já tinham rugas.
Rugas daquelas de quem já tinha vivido muito e muito mais tinha para contar.
Com os seus pequenos e grandes olhos perscrutava o horizonte daquele quarto cheio de penumbra.
Doces silêncios enchiam o ar enquanto observava as sombras de tudo o que o rodeava.
Sentia-se bem.
Quente e protegido.
Com uma paz na sua alma que o levava ao encanto e descanso nos braços de Morfeu.
Asssim eram as noites na casa de sua bisavó.
Plenas de doçura e encanto revolto em velhos lençóis de flanela.

segunda-feira, março 01, 2010

Homenagem a quem nunca conheci




Hoje fui a um velório.
De alguém que nunca conheci.

Muitas, mas muitas flores.
Se a quantidade de flores for reciproca com a bondade humana, de certeza que foste um grande Homem.

Mas não eram apenas flores.
Delas emanavam paixão, amizade, mas também tristeza de te ver partir.
Eram todas belas.
Escolhidas com cuidado.
Com Amor.
Com o cuidado de quem se quer bem.

Com toda a certeza, foste um bom amigo para os Teus.
Com T grande, porque estiveram lá todos.
Para dizer um até sempre, Um Adeus, Um Até Breve.
Via-se no Olhar, na Lágrima, na Palavra por dizer, nos Gestos.
Nunca te irão esquecer.

Saudades Etéreas para quem não te conheceu.
Mas serão Saudades Eternas para quem te conheceu.
Para quem conviveu e caminhou ao teu lado.
E todos os passos que deste na tua vida.

Até à tua última morada.

Onde agora estás, farás novamente amigos.
Verdadeiros.
Como aqueles que aqui deixaste, com saudades plantadas.
Não será dificil para ti.

Deus chama para junto dele quem mais quer.

Fiquei triste.
Não só pela minha amiga o estar.
Mas por não te ter conhecido.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Numa qualquer Sala de Espera

Calma e triste, estava a senhora.
Olhos verdes mas baços, da idade.
Sentada na sala de espera fixava a saída com a esperança de o ver entrar.
Uma última vez. Na sua vida.
Sem vontade de chorar fosse de tristeza ou de alegria.
Apenas estava. Apenas se mantinha.
Agarrada àqueles pensamentos de tudo o que se passara.
Pensamentos repletos de palavras sem som que a língua já não emitia, que a boca já não bebia.
Trevas ocultas na luz que a rodeava. Os seus pensamentos do outrora.
Esperando naquela sala de espera por tempos que já não voltavam, ali estava, olhando a porta de saída da sala de espera como se esperasse que ele voltasse e entrasse por ela, para se sentar a seu lado, para a noite resplandecer como o dia no alvorecer.
Sentada sem nada ver, ali se mantinha, ali esperava, estagnava, até que a porta se abrisse... uma última vez.

sábado, fevereiro 20, 2010

O passado ficara lá atrás

Entrou, querendo estar calmo e sereno, naquela casa que fora sua, durante alguns anos da sua vida.
Olhando para o chão de mosaicos claros e paredes de estuque da entrada, recordou retalhos de uma vida que ali passou. Uma vida cheia de alegrias no presente e de esperança no futuro.
As paredes já perdendo a tinta não tinham a vitalidade de outrora. Perdera vida, perdera força. Como tudo.
Dando alguns passos, aventurou-se um pouco mais e observou pela porta do que fora uma sala, as janelas baças e foscas da humidade e sujeira de anos vazia.
Cheirava a bafio, a sujo, a guardado. Tudo cheirava a tristeza.
Na cozinha, nada restava. Apenas um exaustor e extractor de fumos que, avariado, tinha ficado para trás, após a mudança.
Na casa de Banho, um pequeno rato fugira assustado para um buraco na parede, ao sentir a sua presença, ficando à espreita com os seus pequenos olhos habituados à escuridão!
Chegou aos quartos. Um carrinho de bebé ainda repousava no chão de soalho flutuante o que o levou a recordar a beleza daquele, outrora, quarto de criança.
No quarto principal, velhos cortinados tapavam precariamente as grandes janelas que, através dos vidros partidos, mostravam uma paisagem deslumbrante da que séculos atrás, fora chamada Cidade Luz, Lisboa.
Voltando ao corredor longo dirigiu-se às velhas e enferrujadas escadas de caracol que em tempos brilhavam de tão limpas e tratadas que estavam.
Foi dar à sala interior que ainda tinha o grande e velho móvel de cedro que outrora servira de biblioteca.
Observou o grande salão que dava para o jardim. As suas paredes estavam cobertas de heras e outras trepadeiras. A natureza já começara a recuperar o seu espaço perdido.
Observou o exterior. O pequeno, mas outrora belo e acolhedor jardim, hoje não passava de uma lixeira cheia de todos os géneros de detritos possíveis e imaginários. Onde não os havia, a vegetação selvagem tinha tomado conta de tudo.
Voltou ao interior da casa e dirigiu-se à entrada que levava à sala do outro lado do velho móvel que outrora servira de atelier de pintura.
Ali a destruição era maior. Um cano da pequena casa de banho que a sala acolhia deveria ter rebentado e deu cabo do chão de madeira. As paredes estavam podres e havia bolor verde e viscoso por todo lado.
Um cão ladrou lá fora.
De lágrimas nos olhos acordou para a realidade, subiu as escadas e dirigiu-se para a porta de saída daquela casa que outrora fora o local dos seus sonhos.
A família esperava-o no carro após o regresso do Reveillon.
Não tinham tido coragem de entrar.
Quando venderam a casa, anos atrás, nunca pensaram que os novos donos, após terem recebido uma herança, a tivessem abandonado daquela maneira, reduzindo-a a um monte de escombros, destruindo sonhos, recordações de vidas e paixões que nela se passaram.
Continuaram viagem para casa.
Era hora de ohar em frente.
Um novo ano começara.
O passado ficara lá atrás.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

O Desejado

- Meu filho, vinde a mim. Teu avô, carne da tua carne, sangue do teu sangue te chama. Filho do Sol e da Lua, chegou a hora de conheceres o significado das letras, a importância dos números.

“Com pequenos passos se aproximou do avô. Alto, austero, pele mais clara que os glaciares, olhos azuis metálicos, decisões e olhar firme, esticou a mão de dedos compridos e finos. Unhas bem tratadas, sorriu com seus lábios finos e rosáceos pegando na mão pequena e receosa do neto.
Aproximou-o e tirou de um saco de pele usado e gasto um livro enorme e grosso. Tinha uma capa, também de pele, e neles estavam gravados a ouro estranhas e misteriosas marcas quais runas celtas.”

- Aqui, frente a ti, tens o pilar da sabedoria: Aqui se apresenta perante ti, meu neto, carne da minha carne, sangue do meu sangue, o princípio de todo o conhecimento.
O sangue dos que nos antecederam.
O sangue daqueles que deram a vida para cresceres alimentando o teu cérebro com os conhecimentos ocultos que passaram de geração para geração, a princípio de boca a ouvido, depois séculos mais tarde, para não se perderem aqui foram escritas.
Sábias palavras que o vento não apagou, que o tempo não mudou.
A partir de hoje, tua vida mudará.
Terás de aprender o significado dos símbolos, a razão dos números, a força das palavras, para mais tarde, quando completares dezoito anos, receberes o legado que te deixarei.

“Tambores rufavam ecoando nos ouvidos da criança. Faziam tremer e vibrar as velhas paredes da casa de pedra onde se encontravam. Lá fora apenas existia o bosque de frondosos carvalhos que isolavam a casa de seu avô do resto da civilização, mas o som de algo invisível continuava a ecoar em seus ouvidos enquanto ouvia solenemente, mesmo sendo muito jovem, a altivez e sapiência de seu avô, guardião de um conhecimento há muito desconhecido para os vulgares mortais, afastados da terra e dos seus segredos milenares.
Enquanto o ouvia, silenciosas criaturas parecidas com pequenas labaredas voavam ao seu redor deixando um rasto cor de fogo e aroma de rosas no ar. Seu avô continuava falando, mas tomando um aspecto intrigado para com ele."

- Há muito, muito tempo, ainda se adorava os Deuses Antigos, houve um grupo de Homens, conhecidos pelos antigos povos da Península como os Luz-Citâneos. Esses homens pertencentes a uma brava e antiga nação da qual somos os seus descendentes, adoravam a Terra e suas divindades.
Conheciam a maneira de ver, falar e visitar seres que ninguém hoje em dia imagina que existem.
Decerto que já ouviste falar de fadas, elfos, centauros e outros. Criaturas mitológicas ligadas ao imaginário dos contos de fadas narrados às crianças como tu, nos dias de hoje.
Esses bravos homens, conhecedores da Sabedoria Antiga herdada de seus antepassados vindos das terras submersas pelo mar, mantiveram viva a tradição de se manterem em contacto e equilíbrio com essas forças da Terra.
De entre esses homens, havia um, bastante jovem, que sobressaia em relação aos restantes. Seu nome era Virgantu.
Nasceu com o Dom. Apenas poucos nasciam com o Dom.
Um dos poderes que o Dom lhe dava era a possibilidade de poder passar pelos mundos com bastante facilidade.
Enquanto os outros homens da sua espécie necessitavam de contactar com os Elementares em épocas precisas, Virgantu, apenas precisava de sorrir e abrir a sua mente àquilo que acreditava.
Abençoado desde que nasceu pelas Quatro Fadas Elementares, Rainhas da Natureza e dos Sete Mundos, cedo se apercebeu e cedo se aperceberam todos os que o rodeavam que ele era o Homem destinado a mudar o mundo físico.
Se os outros homens o deixassem, claro.
Mas como a inveja é dos pecados mais antigos do mundo, Virgantu, não chegou a envelhecer, acabando por desaparecer misteriosamente, mas deixando aos Luz-Citâneos as velhas fórmulas para a harmonia dos Sete Mundos.
Na verdade está escrito que Virgantu se retirou para a Terra das Quatro Fadas quando viu que, além dos Luz-Citâneos, os pobres mortais não eram dignos de conhecerem a felicidade e harmonia da Natureza, porque para além de não a compreenderem cedo a destruiriam.
Na verdade desistiu do seu desígnio, mas as Fadas Rainha perdoaram-no e acolheram-no no seu seio.
Contam os Antigos, que foi proclamado príncipe dos Sete Mundos tendo casado com a filha mais bela das Fadas Rainha, Iriana.
Nesse dia as portas entre mundos se abriram de par em par tendo existido amor e felicidade em todos os cantos da Natureza.
Belas canções bailavam pelos ares e os humanos viram coisas lindas e inimagináveis como nunca tinham sido vistas.
Belas demais para se descrever em letras ou palavras, mas, como sempre os pobres mortais fecharam-se em suas casas com receio do desconhecido.
Foi a última vez que os Portais da Natureza se revelaram aos olhos e mente dos pobres mortais.
A partir daí, apenas os Luz-Citâneos e seus descendentes ficaram portadores do conhecimento da existência desses mundos e desses seres frágeis e belos mas ao mesmo tempo fortes e ferozes para quem lhes quer mal.
Ficaram a partir desse dia a ser portadores do Livro das memórias aguardando a chegada Desejado.
O portador do Dom.
Até aos dias de hoje temos aguardado a sua vinda.
Mas hoje uma nova página se abrirá no Livro das Memórias e essa página terá um nome. O teu, meu neto.
Teu pai cedo deixou de acreditar na herança que lhe estava destinada e só vejo em ti, desde o dia que nasceste, o futuro guardião das Palavras Sagradas.
Aceitas, com força e nobreza esse fardo pesado que pretendo te colocar aos ombros?

- Sim, avô. Por me teres dado a conhecer o segredo e a força das palavras mágicas e dos números do conhecimento fizeste com que crescesse mais do que a minha tenra idade. Não sei se estou preparado mas tudo farei para ser um digno representante dos nobres Luz-Citâneos e tudo farei para manter viva a chama sagrada do conhecimento.

“O avô sorriu e abraçou-o ternamente.”

- Então chegou a hora. Teus pais não estavam de acordo, mas não tem coragem de negar o inegável quando sabem que é e sempre foi o teu destino desde que nasceste. Na verdade não serás apenas o futuro guardião das Palavras Sagradas, porque tu tens o Dom.

- Como sabeis que tenho o Dom, meu avô, se eu próprio não o sei?

- Ouves algo de estranho não ouves, meu rapaz? Música bela e melodiosa no ar? Vês algo não vês, meu rapaz? Bem te vejo a olhar em teu e meu redor como se algo nos sobrevoasse e rodeasse. Tenho estado a observar-te durante estes dias e não enganas.

- Mas avô. O que ouço são apenas tambores rufando na floresta e vejo estas pequenas luzes a subir e descer que nem loucas à nossa volta.

- Pois, neto desejado. Nada disso ouço. Nada disso vejo. Apenas o Escolhido tem o Dom de ver e ouvir os Elementares quando lhe apetece. Ou até quando não lhe apetece, porque a sua mente está aberta aos Sete Mundos.
Estamos esperando por ti há séculos. Contigo os Sete Mundos voltarão a ter esperança renovada de que o equilíbrio da Natureza voltará.
Teremos de te preparar para que estejas pronto para o teu Destino.
Fazer ver ao comum dos mortais que a Natureza e este planeta pertence aos Sete Mundos e não pode ser destruído. Deverá ser amado e protegido para que todos os seres vivam em paz e harmonia. Será uma tarefa hercúlea para a qual deverás ser bem treinado.
Se o nosso mundo continuar no caminho até agora tomado, os outros serão afectados e nada restará a não ser pó e cinzas.
Vinde. Caminhai a meu lado. O destino te aguarda lá fora.

“A porta se abriu e sairam juntos para a floresta.
Milhares de seres elementares esperavam a criança para a receber em seus braços.
Ali estava o Elo perdido, a criança esperada, desejada, para a salvação dos povos.
Seu avô reparava nos olhos brilhantes do neto que tomavam diversas cores e em sua face maravilhada.
Sorriu e sentiu-se animado por uma força enorme e maravilhosa.
Sentiu-se feliz como nunca o tinha sentido, mesmo sabendo que à sua frente apenas estavam os velhos, fortes e frondosos carvalhos que sempre conhecera em toda a sua vida. Por segundos sentiu uma ponta de inveja do seu neto por apenas ele poder ver algo de tão belo que nem ele, portador até àquele dia do Conhecimento Sagrado, pôde ver num segundo sequer da sua vida.
Mas logo se arrependeu do que sentira.
Uma lágrima se assomou nos seus olhos azuis, agora afectuosos.
Ainda não se tinha separado e já sentia saudades daquela criatura de tenra idade.
Largou sua mão e viu-o a ser levado pelo ar como um folha levada por uma brisa da manhã.
Seu neto ria e estava feliz como nunca, brincando com algo invisível.
Por breves instantes pareceu-lhe também ver pequenas criaturas voando, deixando no ar rastos cor de rosa primaveril.
Mas uma coisa tinha a certeza.
Aquele aroma no ar, a flores silvestres, não provinha dos carvalhos ao seu redor.
O neto olhou para o seu avô, sorriu, acenou com sua pequena mão, desejou-lhe um até breve com palavras silenciosas dirigidas directamente ao seu cérebro e desapareceu na Natureza.
Prostrado, chorando de felicidade, seu avô rezou um salmo à Natureza e soube que a partir daquele momento havia uma esperança de sobrevivência.
Tinha começado uma nova era.
A Era do Conhecimento.
Os Sete Mundos voltariam a unir-se.
A Harmonia estaria de volta em breve.
O Desejado tinha voltado.

Despedida

Quero a minha mãe.
Quero a minha mãe.

Chorava a criança convulsivamente enquanto batia com as mãos, os braços e as pernas no chão feito de mosaico frio.
Os avós não sabiam o que fazer.
O pai estava fora trabalhando.
A mãe estava hospitalizada fazia três meses e restava-lhe pouco tempo de vida. Uma coisa má a levaria deste mundo.
O garoto pouca contacto tinha com a mãe.
Ela tinha saído de casa ainda ele não tinha um ano de idade e seus avós é que eram sua mãe, seu pai, sua família.
O pai desiludido com o desgosto de amor dedicava-se doentiamente ao trabalho e quando não estava no emprego passava as horas nos cafés em jogos de snoocker.
- A mãe está doente no Hospital. O pai no fim de semana leva-te para a ver.
Mas a criança continuava. Olhos raiados de sangue, pele roxa de tanto gritar e chorar, parecia que lhe poderia dar algo a qualquer momento.
Passou assim uma hora completa.
Exausto e cansado acabou por adormecer ao colo de sua avó.
O telefone tocou.
Com passos calmos, conforme a sua personalidade, o avô dirigiu-se ao telefone. Atendeu.
Ouviu.
Agradeceu e desligou.
De semblante carregado fez sinal à avó que deitou a criança no sofá tapando-o com uma manta grossa e quentinha.
O garoto, meio acordado, observava-os.
Parecia que fazia uma análise fria da situação, observando-os com os seus grandes olhos castanhos.
A avó começou a chorar dizendo baixinho:
- Pobre menino. Pobre menino.
O garoto levantou a cabeça e disse:
- Avó.
Quero a minha mãe.

– silêncio –

- Avó. A mãe foi para o céu, não foi?
A avó ainda com olhos lacrimejantes, tentando disfarçar, perguntou:
- Porque dizes isso, querido?
- Eu sei.
Por isso quero a minha mãe.
Levantou-se um silêncio na casa apenas quebrado por um pequeno choro convulsivo da criança enquanto, entre dentes, dizia que queria a mãe.
Mãe essa que na verdade nunca esteve com ele como uma mãe está com a sua cria.
As horas passaram.
Finalmente chegou o seu progenitor.
Deram a notícia.
O olhar vidrado pelas lágrimas e as mãos crispadas diziam tudo.
Olhou para a criança, aproximou-se dela e disse baixinho.
- Dela, só te tenho a ti.
Afagando-lhe o rosto. Um triste sorriso na face. Uma lágrima correndo entre as covas de sua cara escondendo-se por detrás do colarinho de sua camisa.
- És tão parecido com ela, Meu Deus.
O menino, enxugando as lágrimas ao pai com sua pequena mão, respondeu-lhe.
- Não te preocupes, papá. A mamã está nos observando e não deixará que nada de mal aconteça.
Uma brisa passou, mesmo com as janelas encerradas, e os dois olharam para o vazio, abraçados, sentindo-se sós, mas ao mesmo tempo cheios de algo, de alguém. Cheios de Algo que não compreendiam.
Os avós, esses, deixaram-nos sós.
A despedirem-se.

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Novas gentes, novos lugares

- Querido. Temos de conhecer novos locais, novas gentes, novos mundos! As minhas colegas, todos os anos, viajam para sítios exóticos com os maridos e nós nunca vamos a lado nenhum a não ser ao shopping com a tua mãe!
Sempre a mesma conversa. Anos e anos seguidos. Qual é o problema de nunca irmos a lado nenhum? Não fica contente com o aconchego do lar? Não lhe chega? Mas agora vai ficar surpresa. Vou satisfazer a sua ânsia de conhecer uma realidade diferente!
- Querida. Prepara-te. Este fim de semana vamos passear. Finalmente vais conhecer novas gentes, novos hábitos, novos lugares.
- Que bom, Amor! Fico tão feliz por afinal me ouvires! Vou já contar à minha mãe.
Partimos logo de manhã. Dei-lhe a conhecer novos locais, gentes diferentes, sabores exóticos, cheiros estranhos. Ouvimos línguas que não entendíamos, gestos que não percebíamos, culturas tão diferentes da nossa! Um passeio cheio de retalhos do imaginário, cultural, exótico, desconhecido, envolvente que se entranhava em mim a cada passo que dava.
Voltámos para casa.
Ela fez as malas e partiu!
Nunca mais falou comigo!
Os papéis do divórcio vieram pelo correio para eu, simplesmente, assinar!
Sabia que dando-lhe a conhecer novos mundos corria este risco.
Nunca, mas nunca mais levarei uma mulher minha a passear aos sábados de manhã a Lisboa. Muito menos à Mouraria!

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Vá-se lá compreender as mulheres!

Sentia-se um homem realizado. Já na casa dos setenta, tinha casado ainda muito jovem.
Tinham tido 3 lindos filhos, dois rapazes e uma menina, que sempre foram crianças correctas, educadas e depois, adultos equilibrados, felizes e realizados.
Já lhe tinham dado cinco netos. Qual o mais belo? Todos gostavam muito do seu avô.
Mas o que o fazia sentir mais realizado era a sua mulher.
Companheira inseparável naqueles anos todos. Sempre a seu lado, quando necessitava ou não.
Ele não era de muitas palavras, njunca lhe tinha dito palavras de amor. Mas ela também não era mulher disso!
Nunca lhe faltou com nada. Cama, mesa, roupa lavada, era um mimo de mulher.
Tinha as virtudes que mais gostava numa fémea.
Por isso quando lhe perguntaram, numa entrevista de rua, se ainda amava a sua mulher ao fim daqueles anos todos de casado, respondeu sem vacilar que sim. Resolveu dizer o que lhe ia na alma, finalmente.
Disse que a amava muito!
E porquê? Porque ela era muito trabalhadora, limpa e asseada! Por isso nunca pensara sequer ter uma mulher a dias, uma empregada doméstica. Para quê se a mulher já o era. Se já tinha aquelas virtudes que ele tanto apreciava acima de tudo? Que era por isso que a amava. Por trabalhar em casa desde o nascer do sol até à hora em que ele se deitava pronto para ressonar o ressono dos justos. Por limpar a casa toda, não deixando sequer que um pouco de pó andasse pelo ar. Que cheirava sempre tão bem, como a casa onde viviam!
Não compreendeu a atitude dela!
Quando o disse para as câmaras, para o país todo ouvir, era como uma declaração de amor!
Não estava à espera que ela lhe desse uma "murraça" em directo, o tivesse chamado de porco e ingrato e agora, uma semana depois, estar só, no seu cadeirão favorito na sala, à espera de se encontrar com ela e o advogado para acertarem o divórcio!
Aos Setenta anos!
Vá-se lá compreender as mulheres!
Se calhar tem outro!!!

Sakamuri era um Homem feliz...

Sakamuri era um homem feliz.
Pelo menos assim o gostava de pensar.
A sua grande paixão sempre foi a Belle Cuisine.
Não como consumidor, mas sim como criador.
Era um renomado Chefe de Cozinha. A sua cadeia de restaurantes era famosa por todo o Japão.
Mas nunca tinha conhecido outro tipo de felicidade. A felicidade e o prazer de amar alguém. Não perco tempo com futilidade, costumava dizer no seu circulo reduzido de amigos, conhecidos ou interesseiros como gostava de os classificar.
Era um homem feliz. Assim o gostava de pensar. Gostava de começar os seus dias sentado sempre na mesma rocha, descalço, a olhar o mar mudando de cor.
Mas naquele dia algo iria mudar para sempre a sua vida.
Tinha-o começado com o seu ritual de há anos. Saiu de casa, não sem antes admirar a sala que possuía repleta de prémios pelas suas criações culinárias. Dirigiu-se à praia próxima de sua casa, descalçou-se e foi andando pela areia fria até à rocha mais próxima do azul esverdeado.
E foi aí que a viu pela primeira vez. Cabelos compridos, negros do azul mais profundo que o mar possui, pele branca como coral e uma face mais bela do que qualquer das suas mais mirabolantes criações culinárias.
Chamou-o e ele foi. Entrou na água dando-lhe a mão e foram para longe levado sempre por ela, cada vez mais para baixo. Foi aí que se percebeu que aquela visão que o deixou de imediato agarrado pela paixão louca e insana, era, afinal, parte mulher, parte criatura do mar.
Assustado, tentou-se libertar, mas cada vez mais se sentia seu prisioneiro.
Preso, sem ar, quase a sucumbir, foi beijado com loucura por ela.
Deixou de ver! Sentiu o sabor de todas as iguarias do mar naquele beijo! Sentiu-se enleado numa rede de espuma que o levava não ao céu, mas, poder-se-ia dizer, ao paraíso.
E louco de paixão, seguiu-a...
Naquele momento iria com ela até ao fim do mundo.
Apercebeu-se que após aquele beijo conseguia respirar debaixo de água! Poderia ficar com ela para sempre!
Poder-se-iam amar sem que nada mais importasse naquela vida.
Mas cedo veio a saber que a saudade mata, rói por dentro. E começou, todos os dias, a recordar-se da sua anterior vida, como era calma e bela.
Decidiram. Iriam viver na terra. Nunca se separariam.
Ela não conseguia idealizar a vida sem ele. A paixão, o amor, era louco entre ambos.
Regressaram numa noite. Discretamente, colocou-a ao seu colo e levou-a para casa.
Acomodou-a e deu-lhe um espaço para ela. Só para ela.
Sakamuri era um homem feliz.
Hoje, mais que ontem, tinha a certeza que era um homem feliz.
Descobriu os prazeres do amor, da paixão, viveu tempos loucos de prazer que nenhum homem se poderia orgulhar de ter vivido e, depois de tudo isso, voltou à sua vida. À vida que ele tanto amava.
E após isso... ficou famoso. Conhecido mundialmente. Pelos seus pratos de sushi, cujo segredo apenas ele conhecia.
Ainda tinha na sua casa, a barbatana da cauda, para se recordar dela.
Ficaria para sempre grato à sua paixão de cabelo azul profundo.
Nunca tinha provado um sushi tão bom como aquele!
Sakamuri era um Homem feliz...

No Mundo dos Sós

No mundo dos humanos, seres tão gentis, como alegres, tristes, afáveis, antipáticos, virtuosos, brutos, gentis, guerreiros, selvagens, invejosos, ambiciosos, colonizadores, procriadores, enfim, numa palavra, civilizados, havia uma subespécie que ninguém dava conta!
Era o Povo dos Sós.
O incrível mundo dos Sós.
Os Sós andavam no meio de todos e ninguém os via!
Os Sós cruzavam-se com os Civilizados, a todas as horas e ninguém reparava neles!
Os Sós não tinham ninguém.
Os Sós não viviam com ninguém!
Não tinham quem lhes sorrisse à noite, quando adormeciam.
Não tinham quem lhes dirigisse a palavra!
Poder-se-ia dizer que eram invisíveis. Os Sós.
Até que um dia, um humano, como qualquer um Civilizado, reparou num Sós.
Lá estava ele, numa esquina, na parte mais escura da rua, em cima de um cartão, sujo e molhado.
O humano Civilizado aproximou-se e viu que o Sós tinha vida!
Respirava como ele, movimentava as mãos como ele, olhava como ele!
Se bem que o olhar era mais triste.
Por incrível que pareça, até lhe sorriu!
O Sós era um ser vivo!!!
Entrou na pastelaria mais próxima e comprou um pão com manteiga e um pacote de leite.
Voltou à rua e encontrou-o no mesmo lugar.
Mas agora ainda lhe parecia mais idêntico a ele e aos outros Civilizados.
Talvez por ter esticado a sua mão, suja e gretada pelo frio!
Deu-lhe o alimento, tendo o Sós comido avidamente!
Saiu dali e voltou ao seu local de trabalho!
Como era repórter e tinha um trabalho a apresentar para os milhões de ouvintes civilizados, lembrou-se de falar naquele ser que tanto o intrigara. O Sós!
Contou como ele lhe ficou grato com um simples pão, como lhe prometera voltar para lhe dar um pouco de calor oferecendo um cobertor. Como lhe dera algum dinheiro para ele se poder alimentar melhor, vestir algo mais quente, tomar um banho!
E todos os Civilizados acharam incrível! Como seria possível haver entre eles o Mundo dos Sós??!!??
Já tinham ouvido falar neles, é verdade. Mas ali, nas suas cidades?
Como era possível!
Nunca tinha acontecido tal!
E saíram às ruas. Primeiro eram dezenas. Passaram rapidamente a centenas. Até serem milhares. Milhões, mesmo!
Todos a querem descobrir o Mundo dos Sós!
Todos a quererem auxiliar o Mundo dos Sós.
No fim, não custara nada! Até soubera bem!
Acabaram por descobrir que sempre houve Sós entre eles. Que trabalhavam com eles, que os cumprimentavam na rua, que estudavam com eles, que havia Jovens Sós, Idosos Sós, Sem abrigo Sós, Casais Sós, Homens vulgares Sós, Mulheres comuns Sós.
Era um Mundo paralelo o qual nunca se tinham apercebido.
Mas em pouco tempo, com o pouco que deram, os Sós integraram-se e passaram a pertencer às suas ruas, aos seus bairros, às suas cidades, aos seus amigos, às suas famílias!!
E deixaram de ser os Sós. Para haver uma nova Raça. Uma nova espécie.
Um novo mundo.
O mundo dos Homens... simplesmente.

Rotinas

Louca de cansaço ia, ainda moça, para casa
O dia não tinha corrido de feição
o trabalho acumulava-se e o tempo era escasso.
Aqueles que ela julgara amigos, irmãos,
afinal não eram o que são
não eram o que julgava,
o que pensara, o que imaginara
Criticas, conversas, bichanices, tramóias
tudo a cansava nesta vida cheia de regras, leis e hábitos.
Abriu a porta, como abrira milhares de vezes
Entrara em casa como o fizera vezes de milhar
Pousou seus pertences e começou...
A máquina de lavar colocou a trabalhar,
enquanto não esquecia de preparar a roupa de seu filho
Pelo canto do olho observou as decorações de Natal
Terminou o que fazia e foi limpá-las não esquecendo de as arrumar
Estendeu a roupa que deixara lavada pela manhã
O filho entretanto requeria a sua atenção
Preparou o jantar familiar
e alimentou a criança
entretanto o marido mastigando pedaços de alimento
observava com olhar vazio
as imagens que corriam na tv
Terminaram, levantou a mesa e continuou
Levou o menino ao quarto
Com um beijo despiu aquele pequeno corpo e vestiu-o para dormir
A máquina da loiça após estar bem cheia entrou no ritmo
no som musical dos aparelhos domésticos funcionando
Abriu a porta de casa
como já o fizera milhares de vezes
Na mão levava os restos do dia anterior
O lixo que sobrara da sua vida
Despejou-o na conduta do prédio
como se deitasse fora o cansaço na sua vida
Voltou e tornou a entrar em casa
Como entrara centos de milhar de vezes
Preparou a árvore de natal para o ano anterior, guardando-a
Como seria bom se o Natal fosse todos os dias de sua vida
Na despensa colocou os enfeites, brilhantes, de Natal
e foi-se deitar, cansada preparada para outro dia de sua vida
Ainda teve tempo,
enquanto ouvia no quarto ao lado o barulho do sono dos justos de seu filho,
de ouvir o seu marido dizer:
Hoje tive um dia muito cansativo, nem imaginas!
Olhou fixamente para ele.
Sem dizer uma palavra,
virou-se para o outro lado e... adormeceu!

"O sentido da Vida" ou "A mulher que queria ser monstro... e não sabia!"

(Nota: Este conto é ficção. Toda e qualquer semelhança com factos e/ou pessoas do mundo real é pura coincidência)

Vivia na urbe.
Trabalhava no campo. Num escritório, mas no campo.
Maria Borboto era uma mulher como muitas outras de meia idade, tentando fazer a sua vida independentemente de qualquer homem ou filiação!
Adorava uma boa discussão.
Dia que não discutisse com uma amiga, pseudo-amiga, colega, pseudo-colega, ou até mesmo com o senhor da pastelaria que lhe servia o pequeno almoço, não era dia!
Tudo estava mal apenas pelo prazer de dizer que estava mal.
Sentia-se feliz assim. Sentia-se realizada assim. Sentia um fascínio pelo escárnio e mal dizer.
Devota da coscuvilhice, amante do morder na vida dos outros, lá seguia o rumo de sua vida de apenas um sentido. O de arreliar os outros. Apenas isso fazia tinha sentido. Para ela era o Sentido da Vida!
Os colegas não podiam almoçar na copa, que estava preparada para tal, sem que ela criticasse que não se devia comer de pé, que ficava tudo a cheirar mal, que deixavam a louça suja, que deixavam a louça limpa mas a secar, que... que... que...
Nenhum colega podia tirar uma cópia com mais de dez páginas porque ela queria a fotocopiadora sempre disponível quando necessitava de a usar.
Não queria que tirassem impressões muito longas porque queria que a impressora estivesse disponível quando necessitasse.
Não gostava de isto, não gostava daquilo, não gostava deste, não gostava do outro...
Até que um ente maligno que tudo observava resolveu cometer uma graça, daquelas graças que só os entes malignos acham graça, intervindo.
A senhora, muito querida e solicita, ironicamente falando, estava a desancar um colega apenas por ter deixado cair uma gota de café ao chão, quando lhe chegou às suas reais narinas um cheiro degradante e nauseabundo!
Gritou logo, para quem a pudesse ouvir, que era inadmissível aquele cheiro, as pessoas deviam tomar cuidado, não deviam deitar dejectos poluentes no caixote do lixo, que isto, que aquilo... enquanto ia descascando uma pequena meloa!
Ao levá-la à boca sentiu pela primeira vez que o cheiro nauseabundo não vinha do caixote, mas sim do fruto que se preparava para comer.
Repugnada, deitou-a imediatamente no lixo. O mesmo gesto que há segundos atrás criticara aos colegas, por deitarem coisas putrefactas e nauseabundas num caixote que não devia levar tal!
Foi buscar as outras peças de fruta que tinha e assustou-se com o cheiro horrível que exalavam!
Tentou falar com um colega, mas o pobre homem ia desmaiando com o hálito putrefacto que a senhora espalhava.
Assustada correu para os sanitários e olhou-se ao espelho. Colocou a língua de fora, largou o bafo e não notou grande diferença mas estranhamente o espelho quebrou-se em mil bocados!
Ao olhar para o chão apercebeu-se que uma espécie de liquido viscoso escorria de suas pernas deixando um rasto pelo caminho que fizera!
Parecia uma maldição!
Ela que era tão zelosa da critica com os outros, estava a ficar um lixo humano!
Em pânico saiu a correr para a rua mas quando tentou gritar, apenas um som horrível saiu da sua garganta!

Tudo o que criticava nos outros era ela em bruto!

Os colegas nunca mais a viram!
O ambiente melhorou imenso. As discussões acabaram!
Saudades não houve. Apenas temor pelo possível regresso!
A explicação que deram foi de que a senhora tinha apanhado um vírus qualquer, causado pela falta de limpeza do ar condicionado, mas já estava tudo sob controle.

Afinal teve sentido.
A vida que levara até aí.
Os colegas agradeceram...
Com o seu desaparecimento, pelo menos trabalharam mais felizes e conseguiram ver o lado mau do trabalho em conjunto.

Anos mais tarde, supostamente, alguém a viu a deambular pelas ruas de cidades. E em cada urbe que passava os habitantes tinham de ser evacuados e nos campos que percorria a vegetação secava e os animais morriam sem saber a razão!

(Roderick tales - Contos de Roderick)

"A camisa de Raúl Bonifácio" ou "A inveja é coisa feia"

Estava Raúl Bonifácio a trabalhar, quando uma colega se apercebeu de algo que não estava bem!
Raúl tinha uma linha solta nas costas de sua camisa! Situação inadmissível!!!
Avisou-o discretamente ao que Raúl agradeceu.
Raúl tentou arrancá-la torcendo o tronco todo para puxar a linha com a mão, mas a colega disse que não o fizesse porque corria o risco de ficar com um buraco na camisa.
Raúl não lhe deu importância e puxou com toda a força o fio solto.
O resultado foi um buraco nas costas da camisa.
Ora ali estava um grande problema! Como é que ele iria continuar o seu trabalho com um buraco na camisa? Seria inadmissível para a sociedade em que estava inserido!!
O chefe chamou-o ao gabinete e disse:
- Raúl, sei que está a trabalhar com um buraco nas costas da sua camisa. E não tente negar porque já soube de fonte fidedigna. Nem tente disfarçar vestindo o casaco. O melhor que tem a fazer é ir para casa resolver a situação. E se amanhã ainda tiver o buraco, fique em casa. As camisas estão primeiro.
- Mas chefe, eu sinto-me bem!! O buraco nem se vê!!
- Raúl, Raúl! Já lhe disse e não repito. Colaborador meu, não trabalha com buracos nas costas da camisa. O arranjo da roupa, seja ela camisa, calça ou até mesmo roupa interior está primeiro!
E assim lá foi contrariado, para casa.
No dia seguinte o chefe ligou-lhe mas Raúl ainda não tinha resolvido o problema do buraco.
O chefe como bom condutor de homens disse para ele ficar em casa até ao fim de semana e que resolvesse isso da melhor maneira.
Chegou a sexta feira e o chefe tornou a contactá-lo. Raúl já desesperançado com a situação contou que já tinha ido com a mulher a vários locais do país, inclusive à região do Algarve, tendo mesmo dado um pulo a Espanha, mas não tinha conseguido encontrar a cor correcta para remendar a camisa!
O chefe, compreensivo, disse para não se preocupar e até lhe aconselhou o nome de duas ou três costureiras muito boas que poderiam ter algum bocado de linha daquela cor! Bastante caras mas valiam a pena.
Três semanas depois, Raúl voltou ao serviço. Feliz, com a camisa remendada e bastante bronzeado. “Foi por causa da busca árdua que fiz!” dizia ele para quem o quisesse ouvir!
Até que se apercebeu da ausência de Ermengardina.
“Sabe Raul, após você se ausentar, a Ermengardina apercebeu-se de que tinha uma linha solta nas meias.” Disse o chefe “Claro que quando me contaram isso, ordenei logo que fosse para casa”.
“Invejosa” pensou Raúl “Não pode ver nada!!!”

O centro das atenções

As luzes focavam-se nela. Era o centro das atenções. Os gritos de alegria das crianças desapareceu por completo quando a colocaram no meio do palco.
Não sabia se o cheiro que sentia era o do seu próprio medo, se dos animais que estavam enjaulados lá fora.
As luzes incidiam sobre a sua figura deixando visível todas as partes do seu corpo desnudado. O silencio da plateia após os “ohhhsss” de espanto deixavam-na sempre envergonhada, intimidada, sem saber o que fazer.
Já estava naquela vida há bastantes meses, mas ainda não se tinha habituado.
Há pouco menos de um ano a sua vida era um mar de rosas. Tinha tirado Medicina e iniciava uma carreira que se via, em tudo, promissora. Tinha sido sempre a melhor de todos os alunos da Faculdade e auguravam-lhe um futuro bastante brilhante. Começou a trabalhar para outrém numa clinica privada e era apenas uma questão de tempo para poder conduzir a sua própria clinica.
Até ao dia que aconteceu.
Chegou a casa, como num dia normal, tarde.
Chegara cansada e com vontade de ir directamente dormir.
Vivia só. Não se casara ainda que namorasse.
No silencio do seu quarto, tentava dormir, quando sentiu uma vontade tremenda de se coçar no corpo todo. Começou lentamente, quase acariciando a pele. Mas a comichão aumentava e a vontade de acabar com ela subia!
Ao fim de dez minutos começou a entrar em pânico, porque estava com a pele toda arranhada, quase em carne viva.
Foi à casa de banho e olhou-se no espelho.
Entrou literalmente em pânico.
No lugar da sua cara, bela e sem mácula, via no reflexo, uma cara com bolhas enormes em sangue de tanto se coçar. Despiu-se em pânico e apercebeu-se que tinha o corpo todo assim.
Quase a ser tomada por um ataque de pânico, conseguiu vestir um robe e correu para a viatura que se encontrava na garagem de sua casa.
Ao chegar ao hospital, levaram-na de imediato às urgências.
Após diversos exames chegaram à brilhante conclusão que deveria ser alérgica a algo que lhe fez aquela reacção.
Receitaram-lhe medicação para acalmar a pele e mandaram-na de volta para casa.
Duas horas depois a reacção foi mais violenta. Quase rasgava as carnes de tanta dor e comichão que tinha!
Voltou ao hospital e disseram, após novos exames, que não sabiam a razão para aquilo. Não tinham explicação. Estava tudo bem nos exames.

A partir daí a sua vida passou a ser um inferno.
Perdeu o emprego, os amigos e a própria família a começou a rejeitar.
Exalava um cheiro nauseabundo, o corpo começou a deformar-se, pelos enormes, escuros e grossos cresciam no pouco de pele que tinha. Parecia um bicho, um animal repugnante!
As crianças choravam quando a viam, os homens apedrejavam-na, as mulheres benziam-se e até os próprios cães a atacavam pelas ruas.
Até que um dia ao passar por um circo, um dos indivíduos do espectáculo chamou-a.
A princípio desconfiou. Ficou assustada, não lhe fosse fazer mal.
A medo aproximou-se e ele convidou-a a entrar numa roullotte para conversarem mais à vontade.
Disse-lhe para não ter receio. Era o Dono do Circo e tinha uma proposta para lhe fazer.
Começou dizendo que ela era o que ele sempre idealizara, que poderia ganhar rios de dinheiro, tornar-se famosa, rica.
Após pensar, por pouco tempo, e com a sua falta de tudo, não teve outro remédio senão aceitar para garantir a sua sobrevivência.
A partir daí, a rejeitada pela sociedade e o circo que a acolheu, que até aí era pobre e com poucos recursos, passaram a ter enchentes de espectadores que pagavam rios de dinheiro para ver de perto a Mulher-Bicho do Sul do País!
E sob aquelas luzes fortes do palco principal, enquanto era observada por milhares de olhos ávidos em ver as suas deformidades, sonhava com a vida que tivera. Sonhava com os sonhos que almejara. Para se abstrair da vida que levava.

Sonho ou pesadelo?

(Um sonho da Laurinha das Résteas que virou conto devidamente ficcionado, claro!)

Chovia. O barulho das gotas, quentes e grossas de encontro à vidraça dominava o ambiente. Raramente chovia no Verão, mas o clima andava trocado.
Cerrou os olhos e tapou-se com o lençol!
Não conseguia ouvir o barulho da chuva, porque desde criança perdera totalmente a audição, mas imaginava-o: tuc, tuc, tuc, tuc, tum, tum, tum, tum!!!!!
Mas o som imaginado já não parecia de chuva a bater mas sim de rufar de tambores! Lembrava-se desse som porque quando criança tinha assistido a uma dança tribal africana!
Intrigada, destapou-se e viu-se num grandioso quarto de paredes de pedra!
Estaria sonhando? Beliscou-se e doeu! Não estava a sonhar!
Já não estava no seu quarto e... ouvia! Conseguia ouvir!!!
Será que estava a viver agora e aqueles tempos estranhamente modernos eram sonhos? Será que vivia duas vidas sem o saber?
Bateram à porta! Entraram duas aias apressadas e criadas carregando uma tina de água fumegante!
“Depressa, senhora! Está atrasada! Adormeceu!”
“Mas.. atrasada para o quê? Onde estou?”
Riram-se
“Senhora, senhora! Sempre brincando! Despache-se, minha senhora, porque o senhor, nosso príncipe vai partir com o exército e como é natural, quer a sua presença”.
Era uma princesa!!!! Tudo o que as meninas sonham! Ela era uma princesa das verdadeiras! Não queria perder aquilo por nada! E não fosse tudo um sonho saiu apressada da cama antes que acordasse. Desnudou-se, banhou-se, vestiu-se e acompanhada pelas damas de serviço dirigiu-se para o enorme pátio do castelo!
Tudo era enorme, tudo era grandioso!! Esperando por ela estava o senhor, seu sogro e Rei, a senhora, sua sogra e Rainha... e um belo jovem, alto, garboso e com um ar terrivelmente apaixonado!!!
Por ela!!!!! Por ela!!!!!!!!
Só podia ser um sonho!
Tinha os cabelos negros cor de corvo, os olhos de um verde claro, uma pele curtida pelo sol, uma cicatriz na testa, provavelmente de algum combate, e vestia uma armadura reluzente, polida por areia que brilhava ao sol, quase ofuscando todos os outros soldados e oficiais que se perfilavam por trás de si!!
Havia outras jovens.
Infantas, aias e mulheres do povo. Todas bem vestidas e já com lágrimas de saudades por ver os seus homens partir para o campo de batalha!
Contra o protocolo o príncipe saiu do seu local, desceu do seu negro e belo puro sangue e agarrou-a!!!
Como se o mundo acabasse beijou-a dizendo-lhe belas palavras de amor ao ouvido!
Derretida de paixão correspondeu e viu-se a deitar lágrimas de saudade!
Partiram no meio de rufar de tambores e cânticos de guerra.
Recolheu aos aposentos.
Ficara cansada e esgotada pela emoção.
Deitou-se sem se despir.
Fechou os olhos... quando os abriu viu o marido, baixo, gordo, careca e peludo, a levantar-se despindo o pijama enquanto coçava o baixo ventre dirigindo-se ao banheiro.
Tudo passara de um sonho. De um belo sonho!!!
Ou estaria a viver agora um pesadelo?

Apelo de Deus

Tinha chamado a família toda para assistir ao que ele chamava o Apelo de Deus.
Concentrou-se.
A noite transbordava com a sua negra luz todos os recantos da sala.
O silencio imperava.
Da testa de uma das tias brotava uma gota de suor a qual se apressou a secar para não interromper esse momento dito solene.
Ouviu-se o miar de um felino ao longe. Silêncio. Parou.
Concentrou-se.
Um primo pigarreou e pediu perdão, silenciando-se de imediato.
Concentrou-se.
Recordou tudo da sua já longa vida numa breve fracção de segundo. Uma lágrima escorreu pela sua face.
Limpou-a.
Abanou a cabeça e tornou a concentrar-se.
Não se lembrava de ter tido uma decisão tão importante na sua vida. Despira-se de roupas e preconceitos, apenas restando a roupa interior e o orgulho.
Sempre o maldito orgulho!
Sentiu o cheiro da roupa lavada.
Odiou-se a ele próprio, por não conseguir concentrar-se devidamente.
Correctamente.
Inspirou fundo.
Expirou.
Buscou o seu equilíbrio interior.
Sentia-se preparado.
Começou.
Primeiro levemente, depois com toda a força da sua alma.
Apenas em roupa interior e cheio de fé.
Com a sua mão esquerda começou a despir-se tendo um Callipo de limão na direita enquanto sissiava uma música tirolesa.
Cada vez mais forte.
Tão forte que os dentes tremiam.


Apenas recordava vagamente uma linda camisa.
Pena que as mangas fossem agarradas à frente.
Não dava grande mobilidade.
Agora, na sua nova casa na Rua Júlio de Matos ria loucamente.
Deus tinha razão.
Limão em gelado é muito ácido.

Contos e Lendas da Dona Coelha, habitante do Monte da Lua (O Elfo da Mochila de Ouro e a Fada do Espartilho)

Dona Coelha, sempre em azáfama, não parava de labutar na sua toca junto ao pinheiro real!
Seus filhotes, belos e traquinas adoravam ouvir as histórias que contava.
Era tão boa contadora que todos os amigos de seus filhos adoravam visitá-los só para ouvir contos e lendas daquele monte onde se situava as suas tocas. O Monte da Lua.
Lá Dona Coelha parava as suas rotinas diárias para se sentar num tronco e agarrar no livro escrito por ela mesma.
Nesse momento fazia-se silêncio. Os próprios pássaros paravam de cantar e as formigas deixavam de trabalhar ficando abraçadas às cigarras que largavam a guitarra ao lado de suas patas, só para ouvir aquelas palavras mágicas, ansiosos que Dona Coelha os incluísse, quem sabe um dia, nas suas histórias.
E lá começava ela, impregnada de silêncio à sua volta:
Era um bosque perdido. Como qualquer bosque nos dias de hoje. Perdido entre florestas de betão. Nele ainda reinava uma calma e uma serenidade de outros tempos, outras eras. Nele ainda reinava a natureza alheia aos males e problemas gerados pelo Homem, esse ser, esse vírus da natureza!
Aproximamo-nos e vemos um pequeno ser todo vestido de verde escondido à sombra de um cogumelo mágico.
Estava cansado. Tinha corrido toda a manhã a fugir de um pequeno zangão que o perseguia só para o ver assustado e arreliado.
Sorte a dele ter passado pela cidade de campânulas onde habitam as fadas travessas do bosque.
Uma pequena fada, ao vê-lo em aflição, lançou um encantamento de afastamento colocando o zangão a quilómetros dali!
Nesse momento todos aplaudiram. Todos menos os zangões que não gostaram do rumo da história. Dona Coelha, continuou:
Ele agradeceu e quando olhou directamente nos olhos da fada, ficou terrivelmente apaixonado.
Como era bela, como era graciosa!! Isto a seus olhos.
A fada que o salvara era conhecida na cidade das campânulas por Fada do Espartilho.
Graciosa, mas mais redonda do que costumam ser.
Bonita, mas mais simples do que as fadas costumam ser.
Mas tinha o seu encantamento, a sua magia própria que aos olhos daquele pequeno duende verde a fazia ser a criatura mais bela de todo o universo.
Ela tinha uns olhos tristes por nunca ter conseguido encontrar o amor. Tinha um sorriso medroso por não ter confiança em si própria e mesmo sendo malandra e travessa como qualquer fada, tinha receio no que poderia dizer para não ser mal interpretada ou que gozassem com ela. Até tinha colocado uns óculos de orvalho da manhã para que não vissem a tristeza alojada nos seus olhos!
"Obrigado, linda dama dos bosques" disse ele à laia de agradecimento.
Ela intrigada por a tratarem tão ternamente e por termos a que não estava habituada, olhou à sua volta. Mas não! Era para si mesma!
Sorriu, um sorriso tonto, confuso, atrapalhado e disse.
"Não foi nada que me tivesse custado, querido elfo! Quando vejo alguém em aflição gosto de ajudar, ao contrário de algumas minhas irmãs que gostam de ainda provocar mais incidentes. Mas o que fazes por aqui? Nunca te vi por estes lados?"
"Bem, na verdade eu moro aqui, linda fada. Já te tinha observado, mas vocês não reparam em nós, pequenos elfos. Andamos sempre escondidos entre as ervas, para não sermos apanhados por algum predador Como te posso tratar? Não sei o teu nome!"
"O meu nome é Little Mary, mas todas as minhas irmãs me chamam de fada do espartilho, por ser um pouco mais rechonchuda que elas, sabes?"
"Isso é porque elas não conseguem ver a tua beleza!"
Ao dizer isso a fada deu um sorriso do tamanho do mundo e o sol brilhou ainda mais alto!
E as coelhas que ouviam a história começaram a bater as patas no chão, de satisfação. Dona Coelha pediu silêncio e continuou:
"Desculpa, mas sou muito curiosa! O que tens às costas?"
"Isto? Ah! Isto é a minha Mochila de Ouro!"
"Mochila de Ouro? Para que serve?"
"Eh eh eh. Acho graça tu perguntares. Os elfos da minha espécie trazem sempre consigo uma mochila de ouro às costas, para quando necessitam de agradecer a alguém, abrem-na e de lá sai o que os outros, e até ele, mais desejam. Mas é sempre um mistério até ser aberta. A mochila é muito misteriosa! E acho graça porque não é hábito qualquer ser vivo, seja ele fada encantada ou não, a ver. É uma mochila mágica que apenas os elfos e outros seres especiais conseguem ver. Vejo que tu és muito, muito especial"
Disse isso com um sorriso travesso que lhe fazia brilhar os pequenos olhos.
E ela tornou a sorrir.
"E... e vais abri-la?'"
"Claro, Little Mary, mereces."
Nesse momento um grito de alegria brotou das gargantas de todos os que ouviam a história.
Dona Coelha, nada agradada fechou o livro, fazendo um ar de reprovação. Não gostava nada de ser interrompida.
Engoliram em seco pedindo desculpa, ao que Dona Coelha retorquiu que se fosse interrompida uma só vez mais, acabaria ali com a história!
Mas continuou:
A fada, curiosa como todas as da sua espécie levitou um pouco com a ânsia de ver o que saia da mochila e pousou ao lado do Elfo.
Ele retirou a mochila das costas colocando-a no chão! Abriu-a e enfiou a sua mão pequena e graciosa dentro dela!
De lá saiu um pó verde que se espalhou no ar que os rodeava.
Nesse preciso momento eles viram o amor que sentiam um pelo outro, viram o seu futuro radioso e feliz juntos, as filhas fada e os filhos elfo que iriam ter e nesse instante, olhando um para outro e sem palavras para descrever o forte sentimento que sentiam, embrulharam-se num beijo doce e travesso que foi festejado por todo o bosque.
Um novo amor tinha nascido na Mãe Natureza. O ciclo prosseguia!
Dona Coelha fechou o livro e olhou em sua volta.
Todos os seres e criaturas do bosque que a ouviam, estavam unidos no amor e na amizade, silenciosos, de lágrima fácil ao canto do olho e com um espírito de união mais forte do que quando começara a contar o seu conto.
O que viu fê-la sentir-se feliz. Mais uma vez tinha conseguido os seus intentos!
A Natureza vencera. O ciclo de amor prosseguia!

(Roderick tales - Contos de Roderick)

Lua triste, triste Lua

Triste, sentia-se a lua, olhando o espaço infinito!
Triste porque precisava que alguém a animasse...
Triste porque andava pensativa e preocupada ...
Olhava para a Terra, bela e azul e dizia baixinho “Não me vês, não me sentes ... foges! Tens medo que te chame de volta e não sabes o que fazer! E quando tens o azar de me ouvir... Apoio ??? Palavras de consolo ??? ânimo ??? Carinho??? Onde estão? Já nem ao meu luar os namorados de outrora se sentam. Preferem o calor do Sol, a vibração do quente na pele!”

Há muito que a Terra lhe tinha virado costas.
Habituou-se a estar, a pensar, a animar-se sozinha... e a agarrar o que mais lhe dava alegria! Pequenos asteróides que passavam e lhe beijavam a pele.

“Mas Terra, porque não me sorris mais?... precisas de mim e eu preciso de ti.
Para haver equilíbrio entre nós. Para haver equilíbrio no nosso universo. Se pensas que para mim ser feliz é isto ... não é. Aguento o silêncio, a solidão, mas não aguento as palavras duras que dizes. Que é bom é olhar para o sol, receber a sua luz, o seu calor!
Andas sempre à volta dele. Daquele grande e belo astro, eu sei. Por mais que dê voltas sobre ti, viraste-me costas. Não me bates ... mas magoas muito ! Inventaste histórias maléficas sobre o que acontece quando eu estou no teu domínio. Refugias as tuas criaturas quando eu apareço... Eu sei que não sou perfeita, sei que o sol é necessário e tenho a perfeita noção que não sou difícil de aturar, mas... tenho bom coração. Disse-te que estava triste e tu ...”

Chora Lua, triste é o teu coração!

Coelhomem

Dona Coelha andava atarefada em busca de quem tinha bebido o elixir de mirtilos.
Tinha um segredo, essa beberagem cuja receita passava de mãe para filha há muitas gerações na sua família!
De sabor fantástico, era muito apreciado por todos os que o provaram, mas tinha um problema. É que tomado em demasia provocava alucinações.. e possíveis alterações genéticas!
A Dona Coelha bastava encontrar quem estivesse a agir de um modo estranho. Já não via o seu terceiro filho da sexta ninhada, pelo menos desde manhã! Pelico de seu nome, era muito travesso. Andava sempre a fazer asneiras. Não se admirava que fosse ele. Mas tinha de o encontrar antes que fosse tarde!
Perguntou por todo o bosque até que Senhor Texugo lhe disse que o tinha visto lá para o lado do monte das avelaneiras.
Dona Coelha entrou em pânico. Era aí que os caçadores costumavam fazer piqueniques com suas famílias. Pelico arriscava-se a ser guisado nesse dia!
Dona Coelha correu como se um demónio viesse atrás dela! Parecia que ia mais veloz que o vento. As próprias folhas levadas pela aragem riam-se de ver uma coelha correndo tanto. “Onde vais com tanta pressa, coelha? Foges de alguém”, perguntavam os pequenos pássaros que a acompanhavam até se cansarem tal a velocidade e rapidez que ela ia!
Chegou ao bosque das avelaneiras. Estava tudo calmo. Não se via vivalma. De repente, mesmo à sua frente, um homem, rude e mal encarado, como todos eles são, estava a olhar para si! Tinha os olhos arregalados de tão abertos que estavam e preparava-se para lhe saltar em cima. Para a apanhar! Onde já se viu? Com homens destes Dona Coelho podia! O pior seria se viesse um caçador. Com um pequeno pulo fugiu e depressa se escondeu num arbusto! Começou a chamar pelico, mas este não lhe respondia. Foi andando, andando... até que o viu. O coração saltou-lhe no seu pequeno peito! Pelico estava vivo, mas numa gaiola. Reconhecia aquele olhar entre mil! A diferença é que Pelico... crescera incomensuravelmente! Estava um coelho brutal, enorme, gigantesco. Tinha sido utilizada uma gaiola de ursos para o capturar!
Crianças brincavam próximo dele. Pelico dormia. Pela sua aparência via-se que tinha dado luta antes de ser agarrado. Viam-se algumas feridas na sua pelagem, mas nada que desse preocupação. Dona Coelha aproximou-se e chamou-o! Pelico acordou e num misto de felicidade e pânico pediu ajuda a sua mãe! Em conjunto conseguiram roer as grades de madeira e pelico escapou com a mãe. Ambos correram o mais depressa que podiam. Se bem que pelico ao correr abanava tudo à sua volta e chamava muito a atenção!
As crianças gritaram em pânico, chamando os adultos, mas por essa altura já Pelico diminuía de tamanho. O efeito da poção estava a passar.
Quando chegaram a casa já Pelico estava do seu tamanho normal.
Dona Coelha repreendeu o filho ao que este contou que tinha bebido bastante da poção, mas tinha entornado, sem querer o resto não sobrando nada. Com medo de sua mãe, fugiu de casa e quando deu por si estava perdido! Sentiu dores no corpo e começou a crescer sem parar.
Depois apareceram aquelas crianças com adultos. Ainda conseguiu fugir, mas ficou encurralado numa gruta e ... o resto a mãe já sabia!
Dona Coelha abraçou-o, dando-lhe um grande beijo e pediu que na próxima vez, enfrentasse os seus medos, porque tudo o que estava para além daquele pequeno bosque era muito pior do que qualquer castigo que sua mãe lhe poderia dar.
Nessa noite, de dentro das suas tocas viram homens com armas, forquilhas, pás e archotes nas mãos em busca de algo que os atemorizava!
Um gigantesco Coelhomem!!!!

A serpente e a (Maçã?) Reineta

Fora bela, dizia-o à boca cheia para todos ouvirem. E queria continuar a ser bela. Pretendia continuar a ser jovem, magra e esbelta, custasse o que custasse.
Henricunda Reineta era aquele tipo de mulher que detestava envelhecer! Cada ruga na sua face era um martírio na sua vida. Cada prega no seu corpo era o cabo das tormentas e cada pedaço de gordura na sua silhueta era como um vírus alojado em si.
Tentava tudo o que estava ao alcance para voltar a ter uma pele suave de bebé! Experimentava banhos de leite de burra, tomava bebidas intragáveis só porque ouvia dizer que tinha resultado com este ou aquele, expunha-se a operações cirúrgicas, fazia tudo o que podia para recuperar a juventude, tudo para voltar a ter o corpo que tivera há 30 anos atrás!
Mas o galopar do tempo era irreversível!
Era uma mulher irascível. O próprio marido, gente boa, não suportava as suas mudanças de humor. Não fosse um paz de alma e já se tinha divorciado há muitos anos. Pensara nisso muitas vezes, mas nunca tivera coragem de o fazer!
Henricunda “dava no ferro” todos os dias no ginásio para tentar abater aqueles quilos que estavam a mais na sua barriga, nas suas ancas, no seu pescoço, na sua figura, mas depois cá fora, Henricunda terminava sempre as refeições com um duchaise, bolo rico em chantili e farto em calorias. Para não entrar em fase de engorda, tomava sempre um café, no final das refeições, com adoçante. “Açúcar não, que engorda” dizia Henricunda ao empregado, lambendo ainda os beiços dos restos de chantili do seu bolo do pecado! “Um de vez em quando, não faz mal”. Esquecia-se era de dizer que esse de vez em quando era diário!
Além de ter a ambição de possuir uma figura esbelta, também tinha um defeito terrível. Uma grande língua bifurcada! Gostava de morder os outros com as suas tiradas venenosas. Mas sempre pelas costas. Adorava espalhar veneno. Mas nada pela frente. Não era correcto.
Certo dia, Henricunda, aconselhada por uma colega, foi a uma ervanária muito famosa na capital. Ia aconselhada a solicitar ervas verdes de emagrecimento. A suposta amiga que Henricunda como hábito não suportava, dissera-lhe para comentar com a ervanária que pretendia tirar o veneno da gordura do corpo e rejuvenescer as células, que ela compreenderia. Eram palavras de código, disse-lhe a colega.
Henricunda, feliz da vida, lá foi para a ervanária, não sem antes comentar com um colega que aquela coleguinha era estranha porque, tinha ouvido, frequentava locais pouco aconselháveis, como ervanárias!
E lá foi ela em segredo.
Fez como a colega lhe dissera. Disse que vinha em busca de ervas verdes de emagrecimento para tirar veneno da gordura do corpo e rejuvenescer as células.
A ervanária observou-a com um ar sério e retirou-se para um cubículo escondido por detrás do balcão.
Voltou com um pequeno saco cheio de ervas verdes iguais a todas as outras que estavam expostas.
Sorriu, com pouca vontade, pagou e saiu.
Chegou a casa e fez como estava no descritivo que vinha colado no pequeno invólucro de plástico.
Ferveu as ervas com água e sal marinho, juntando um pau de canela no fim para melhorar o sabor.
Bebeu tudo de uma vez e repetiu a dose. Não faria mal se tomasse duas vezes.
Primeiro sentiu um calor no estômago. Deveria estar a fazer efeito. Depois sentiu uma dor e um calor a subir pelo corpo. Deixou de ver. Uma dor enorme toldou-lhe os sentidos. Caiu em agonia no chão. Contorcia-se como um animal selvagem no esgar da morte. Tentou gritar mas nada saiu. Desmaiou.
Quando acordou teve uma sensação enorme de leveza, sentiu-se mais bela, mais esguia, mais elegante.
A última coisa que viu foi uma gigantesca pá, na direcção da sua cabeça. Ficou desfeita em mil bocados.
O marido de Henricunda suava, tal o estado nervoso em que se encontrava! Ermitão Reineta chegara a casa na hora certa. Quando a viu, correu logo para o jardim agarrando uma enorme pá que estava encostada a um canteiro.
Com passos de lã aproximou-se e quando ela se voltava na sua direcção deu-lhe uma pancada forte e certeira mesmo no meio da cabeça peçonhenta. Colocou-a num saco e deitou-a no lixo, no exterior da casa.
Como teria ido parar dentro de casa aquela cobra verde, comprida e viscosa?
Chamou por Henricunda, esperando ouvir a sua voz irritante.
Ninguém respondeu. Sentiu-se bem por estar na solidão sem ter de ouvir a voz irritante de sua mulher, pelo menos até ela chegar a casa. Encostou-se no sofá, abriu o jornal e leu as notícias em paz.
A poucos quilómetros dali a colega de Henricunda continuava a trabalhar, mas com um enorme sorriso nos lábios!

Valsa dos Planetas

Vaidosa ia a Terra na sua órbita sobre a estrela mãe.
A Lua na sua pequenez, bonita e árida, apenas sorria enquanto lhe fazia companhia lançando sobre ela a frescura do luar.
Rodava sobre si para olhar para os outros astros irmãos.
Para ver seus olhares. Para ouvir seus sussurros, sobre como era bela.
Azul, não muito grande, mas também não muito pequena.
Mas de um azul lindíssimo que fazia ruborizar o seu planeta irmão, Marte, planeta telúrico como ela, sua irmã!
Marte, também conhecido por Deus da Guerra, tinha a alcunha de Estrela Vermelha, porque era assim que era visto de noite.
Mas o mais pequenino era Mercúrio. Também era o mais aquecido pelo Sol e era muito mais rápido que seus restantes irmãos.
Vénus, era a irmã bela, a Deusa do Amor. Tinha um corpo como a irmã Terra e gostava de ser tratada como Estrela D’Alva.
Eram os quatro irmãos Telúricos, compostos de rochas e silicatos.

Urano, personificando o céu, olhava invejoso para a rota da Terra. Lendas diziam que ele fora gerado por Gaia, a Terra, mas também sua antiga paixão. Histórias antigas que nunca se resolveram a bem!
Plutão, ao contrário de seu nome, era pequenino e engraçado. Vivia inclinado em relação aos seus irmãos, tomando um rumo diferente deles na sua vida.
Saturno, era o mais vaidoso, com os seus belos anéis. Gostava de os mostrar a quem quer que passasse. Mas fervia em pouca água. Era muito gasoso.
Neptuno, planeta anão, como Mercúrio, era o irmão mais velho. Tinha doze filhas, doze luas, das quais a mais conhecida era Tritão!
Júpiter, do alto da sua grandeza e imponência observava os irmãos. Também tinha quatro filhas e também ostentava anéis.
Eram os irmãos gasosos que se gostavam de juntar aos pares.
O Sol era a estrela central onde gravitavam. Esfera de plasma que aquecia os filhos.
O Sistema Solar abraçava os seus planetas, os filhos dos planetas e o sol, no seu regaço. Sem idade definida era sábio e poderoso. Sua origem era Nebulosa.
No meio de todos existia o Espaço Sideral, com os seus vazios e atmosferas. Ninguém o via, mas sabiam que estava lá! Dominando tudo. O Universo, a Totalidade das coisas, o Todo Inteiro!

ALMA MATER




Título: "Alma Mater"

Hoje vou começar a colocar fotos tiradas por mim.

Quando exponho fotografia uso o pseudónimo de "Roox"

Espero que seja do vosso agrado.

Abraços

In Nomine Dei




Aqui vos trago mais uma foto minha.
"In Nomine Dei" é o título que lhe coloquei.

Pois é.
Nesta nossa sociedade em que quase todos somos católicos, não fervorosos e a maior parte não praticante, a maior parte das vezes só nos lembramos de Deus quando estamos com problemas.
Daí ter-me recordado de colocar esta foto hoje.
Não quer dizer que seja o meu caso, mas tenho vivido alguns momentos muito complicados.
Principalmente com o meu Eu interior. Ir ou não à "faca".
Há cerca de dois anos, mais coisa, menos coisa, tive grandes dores de estômago e, pior que tudo, deitei sangue nas fezes.
Assustei-me.
Falando mal, borrei-me de medo.
Enchi-me de coragem, fui ao médico, expliquei-lhe a situação e ele aconselhou-me a fazer uma Colonoscopia.
Mas como a Ana estava grávida, pensei:
- Se tenho alguma coisa, ainda me começam a cortar por dentro e lá vou eu desta para melhor e nem vejo o bebé.

Agora dois anos depois, aconteceu-me o mesmo, mas pior.
Deixei de fazer necessidades fisológicas de carácter sólido durante bastantes dias. Tinha dores enormes no estômago, do meu lado esquerdo.
E... sangrava (mas principalmente após muito esforço para "fazer" qualquer coisa).
Fui, mais uma vez, ao médico.
Levei na cabeça, com razão.
Mas desta vez, decidi. Vou mesmo fazer a Colonoscopia.
Fiz análises ao sangue e fezes para ver se tinha alguma coisa má e, felizmente, deu negativo.
Ontem fui fazer a Colonoscopia. Como fui sedado, não custou nada.
O pior foi a preparação.
Comecei às sete da manhã a tomar um medicamento em pó dissolvido em três litros de água.
Horrivel. Nojento mesmo.
Os três litros de água deram para dezasseis copos.
Oito copos por cada litro e meio.
De dois em dois copos vomitava.
E tinha de fazer um esforço enorme para não vomitar mais.
Já não conseguia ouvir nem ver nada.
Apaguei a televisão e olhava só para o relógio.
De 15 em 15 minutos tinha de tomar um copo.
E nem imaginam como os 15 minutos passavam a correr.
Ao fim de oito copos e de litro e meio de puro terror, cheguei à conclusão que não conseguia beber a outra garrafa.
Mas enchendo-me de coragem e já sem me preocupar se vomitava ou não, lá consegui.
O pior é que vomitei tanto que já "deitava" sangue junto.
O médico mais tarde, disse-me que isso é normal. Tem a ver com o esforço.
Quando terminei, bebi um café, para tirar aquele sabor horrivel, porque só podia beber café, chá e pouco mais até às 12h30.
A partir daí, jejum total. Nem água podia beber.
E já nos dois dias anteriores estava totalmente proibido de comer legumes e fruta. Não imaginam como estamos dependentes de legumes e fruta sem o notarmos.
Tudo o que queria, parecia legume e fruta.
Eu já duvidava se frango ou carne de vaca não seriam legumes.
Enquanto almoçava estava à espera de ouvir uma qualquer notícia a informarem os bons dos consumidores que os cientistas tinham descoberto que, afinal os frangos criados em aviário eram, nem mais nem menos, leguminosas ambulantes.

Chegou a hora da Colonoscopia.
17h40 da tarde.
Hospital Particular de Lisboa.
Apresentei-me lá, com a minha Fada, Ana para os amigos, e mandaram-me vestir uma bata aberta nas traseiras e um robe branco, quentissimo naquele dia de verão, por cima da bata, e... esperar.
Sempre esperar.
Nunca mais resolviamos aquilo.
Até que o Médico espreitou pela porta da sala de espera.
Cumprimentou-me, dirigiu-me umas palavras de circunstância, que aquilo não era nada, ia ver, até gostava (livra), não ia sentir nada, etc, etc.
Entrámos no gabinete de provas (de provas, esta é gira) e apresentou-me a colega, anestesista, muito simpática.
Viu-me tenso, também fez conversa e aproveitava para me injectar.
Deu-me uma primeira anestesia já o médico se preparava para começar.
Deu-me uma segunda e o médico já estava a começar.
Comentei com ela:
- presumo que já devia estar sedado, não?
Ao que ela retorquiu:
- Vai ver que agora com esta já não sente nada.
Dito e feito.
Só me lembro de ver uma enorme seringa com um liquido espesso, branco e.... vazio.
Acordei já na sala de recobro com a Ana ao meu lado.
Eu totalmente dopado.
Ela com lágrimas nos olhos.
E eu mesmo totalmente drogado com a anestesia deu-me para... falar.
Falar.
Falar sem parar.
A enfermeira passou e comentou que eu no dia seguinte não me iria lembrar de metade do que disse.
Agora, lembro-me dos assuntos que falei, mas do seu conteúdo só me lembro vagamente.
Antes de sairmos, as notícias clinicas.
O médico informou-me que tenho um polípo com sete cms (acho que é 7 cms, estava dopado) e como é muito grande, não era possível tirá-lo sem uma operação.
Retirou amostras para biópsia, que só estão prontas no próximo dia 16 de Agosto.
Disse que a operação resolve o problema mas é Muito Dolorosa, reafirmou ele por diversas vezes.
Conclusão:
Já ninguém me tira um "Andar Novo".

Só espero que seja no Algarve.

Luz




Deborahs theme - Ennio Morricone

Luz era o amado do Senhor
E o Senhor era Amor

Luz era a alvorada de milhares de mundos
E o Senhor o seu Criador

Luz era a Luz da Vida para milhões de povos
E o Senhor era a Vida

Luz era o preferido do Senhor
E o Senhor o escolhera

Era o Protegido, O Ungido, O Filho dilecto
O Senhor amava-o, como carne de sua carne
Ser do seu ser, espírito do seu espírito

Luz era feliz
Anjo de mil asas
Arcanjo de mil luzes
Bebia da Sabedoria do Universo
Comia do Equilíbrio do Universo

Mas Luz começou a ver pelos seus olhos que algo estava errado
Levantou dúvidas acerca de alguns actos do Senhor

Luz perguntava porque o fazia se não era correcto
Mas o Senhor, como era Amor, não respondia
Porque o Amor é mudo e não fala

Luz queria fazer ver ao Senhor a sua incompreensão
Mas o Senhor Como era Amor, não via
Porque o Amor cega e não deixa ver

Luz gritava o seu assombro
Mas o Senhor, como era Amor, não ouvia
Porque o Amor é surdo e não deixa ouvir

E Luz definhou, entristeceu
Sentiu revolta no seu Coração
Perdeu seu brilho, sua cor, sua alegria

E o Senhor, do alto do seu amor… não gostou
E renegou Luz e sua Sabedoria
Por colocar em causa os seus actos
As suas atitudes, as suas decisões

As asas, Luz perdeu
Arcanjo do Senhor deixou de o ser
Anjo do Reino, deixou de o pertencer

E o Senhor despenhou-o
Para bem longe do olhar e da compreensão
Para bem fundo da alma e do espírito
Para uma terra sem nome e sem esperança

E Luz não compreendeu
Como o Senhor
Como o Amor
Podia ser tão cruel

E Luz tornou-se ódio,
Ódio que fere
Tornou-se Lúcifer
Tudo por causa do Amor

O galho de Albino Pessegueiro

Albino Pessegueiro, jovem pouco dado à inteligência era, de facto, feliz.
Sentia-se bem no seu pequeno mundo.
Tinha amigos. Os poucos a que ele assim chamava ou o queriam gozar ou eram no verdadeiro sentido da palavra, amigos.
Sua mãe, Emília Pessegueiro, nome de árvore por parte do marido após casamento, era uma costureira afamada e uma grande beata religiosa. Tinha a casa sempre cheia de alegres clientes, senhoras que não prescindiam de seus serviços, as quais, muitas delas, recrutadas nas manhãs passadas na igreja.
Antão Pessegueiro, pai de Albino era um homem pouco atraente e de poucas palavras, mas que gostava de “pescar sem linha” entre as clientes de sua mulher! Beatas que não perdiam uma oportunidade de pecar para logo a seguir se confessarem.
Antão nunca soube se sua mulher era assim tão boa costureira ou se as clientes apenas frequentavam o atelier de Emília, pura e simplesmente por causa dos atributos do seu pessegueiro, como ele carinhosamente chamava ao habitante do seu baixo ventre!
Albino tinha problemas com os pais. Ambos exerciam sobre ele um controle exagerado para um jovem adolescente.
Albino era virgem. Nunca o confessara, mas não necessitava de o fazer já que todos sabiam que ele fugia das moças de sua idade como o diabo foge da cruz. Era extremamente envergonhado e quando alguma lhe dirigia a palavra, além de não dizer coisa com coisa, babava-se entre palavras mal balbuciadas, o que originava medo e repulsa por parte do sexo feminino.
Albino Pessegueiro estava na altura de quebrar alguns galhos próprios da sua idade, mas dada a sua total inoperância para entrar em contacto com esses seres tão puros e delicados do sexo feminino, visão deturpada dada pelos pais, tentou aliviar a sua libido sozinho.
Pediu, a modos que envergonhado, umas revistas onde apareciam aquelas criaturas divinais, como vinham ao mundo, a um amigo dos verdadeiros, e resolveu fechar-se no seu quarto já em posse delas.
Desnudou-se, ficando apenas tapado com um lençol na sua cama.
No momento em que se preparava para conhecer o sétimo céu, enquanto olhava para a imponência de um par de seios que davam para alimentar uma família numerosa, sua mãe abriu a porta do quarto com uma brusquidão tal que fez com que Albino se assustasse, desse um salto da cama e ficasse todo nu perante ela! A vontade já ia bastante avançada e o galho “cedeu” dando lugar a um lançamento brutal de seiva, atingindo directamente a senhora sua mãe mesmo no meio do peito!
A senhora, que já estava extremamente chocada com o que via, ao ver-se naquela situação saiu do quarto aos gritos com as mãos nos cabelos!
O pai apercebendo-se de que algo se passava foi em socorro de Emília. Levou a mulher à casa de banho para se limpar e com toda a calma do mundo dirigiu-se para o quarto do filho.
Albino já tapado com o lençol, tremia como varas verdes. Ao ver o pai borrou-se em desculpas, babando tudo o que estava à volta com a saliva que saia de sua boca.
O pai acalmou-o e disse-lhe “Meu filho, tens de ver que ao apelares à “irmã da canhota” para aliviares o sentimento de pecado que tens dentro de ti, apenas fazes com que atraias doenças como a tuberculose. Corres esse risco! Tens de aguentar esse desejo e vais ver, daqui a uns anos vais encontrar o lugar certo para colocar o galho do teu pessegueiro, como aconteceu com o pai e a mãe”
Ao dizer isso lancou ao filho um sorriso beatifico!
“Perdoe pai! Não volta a acontecer” Disse Albino, chorando baba e ranho!
Os anos passaram. A senhora sua mãe ficou marcada com aquela imagem para toda a sua vida! Cada vez que se recordava ficava lívida e cheia de suores frios, desatando a correr para ir vomitar!
Albino cresceu forte e feliz. No seu pequeno mundo.
Arranjou emprego numa fábrica de chaves. Aprendeu a profissão e abriu a sua, colocando-lhe o nome de “Fábrica do Galho do Pessegueiro”.
Experimentava todas as fechaduras com o seu "galho de pessegueiro" antes de as colocar à venda. Nunca soube se era aquele o local que se pai se referiu para colocar o galho, mas também nunca teve coragem de perguntar.
Albino continuou a não dizer coisa com coisa quando falava com senhoras e babava-se frequentemente.
Ao que consta continuou virgem até ao fim dos seus dias. Isto é, se não contarmos com as fechaduras que passaram pelo seu galho.

A mulher que gostava de bacalhau

Hilária Alameda, mulher simples do povo, ria a bandeiras despregadas onde quer que estivesse e com quem estivesse.
Tinha o gosto por revistas cor de rosa, cheias de fofocas sobre reis e rainhas de terras distantes e gostava de se vestir na moda que a sociedade ditava.
Loura por meios artificiais, baixinha e redonda vivia na sua imaginação aqueles tempos em que fora magra, bela e loura de nascença.
Mas Hilária tinha um grave problema. Gostava de comer bem e muito!
Lambia-se por tudo o que fizesse mal ao seu organismo! E depois chorava porque não conseguia emagrecer.
Certo dia Hilária saiu do emprego para ir almoçar. Foi com uma colega e amiga. Resolveram ir a um restaurante típico que existia na zona: Mal Hilária se apercebeu que um dos pratos era bacalhau, fez logo ali de imediato, a sua escolha na iguaria a degustar. Hilária era doente por bacalhau. Fosse de que maneira fosse. Pediram ambas um prato de bacalhau confeccionado à maneira da região! Foi falando e comendo, falando e bebendo, falando e comendo, e comendo, e comendo... Não sendo a colega de grande alimento, quando Hilária deu por si... tinha devorado o bacalhau quase sozinha!
Voltaram ao emprego e quando chegaram Hilária vinha muito vermelha, cheia de calores e já tinha desapertado a camisa de tal maneira que se tivesse pelos na barriga de certeza que os colegas veriam!
Sentindo-se mal foi à casinha para se refrescar. Uma colega solícita foi com ela, mas Hilária de tão mal disposta não aguentou e largou tudo o que tinha comido em cima da colega.
Largou tanto, tanto, tanto que ficou novamente esbelta como quando era jovem!
Nem queria acreditar. Aquilo tinha algo de mágico. Ficara mais bela, mais linda do que fora. Maravilhosamente bela. Mas... Sempre há um mas... Cheirava a bacalhau... um fedor horrível!!!!
Mas Hilária não se importava. Queria ser a todo o custo uma beldade estonteante!
Partiu para o restaurante saindo a meio do trabalho, para falar com a dona do restaurante, Juliana Urticária!
A mulher, agoniada pelo cheiro que hilária exalava, disse que achava aquilo estranhíssimo mas talvez tivesse sido do prato que lhe serviu porque tinha sido feito com um pequeno bacalhau que tinha sido comprado nas docas, tendo vindo directamente dos Mares do Norte.
Hilária ao ouvir isso partiu para as docas e conseguiu saber exactamente qual o barco que tinha vendido o peixe e qual o local onde foi pescado.
De imediato levantou todas as suas economias, comprou um pequeno barco e partiu em busca daquele alimento, louca de desejo de juventude!
Hilária nunca mais foi vista e a partir daí nasceu uma lenda entre os pescadores. Dizem que em noites de nevoeiro ou de tempestade nos mares do norte, conseguem ouvir gargalhadas de mulher e um cheiro a peixe nauseabundo no ar.
Contam que foi uma bela sereia que casou com o Rei Bacalhau, dos mares do norte, em troca da eterna juventude!
Mas nós sabemos que é Hilária rindo da sua boa sorte por ter ficado para sempre bela!
O pior era o cheiro a bacalhau!
E ainda hoje a colega tenta lavar o cheiro com que ficou após Hilária lhe ter vomitado em cima... e não consegue!

(Roderick tales / Contos de Roderick)

Laureanna

Laureanna tudo observava em relação ao mortal.
Naqueles anos, tornara-se a sua distracção preferida.
Sem que ele, até mesmo sem que ninguém soubesse, Laureanna ajudava-o.
E tudo estava a correr bem!
Trinta dos cem anos da maldição já tinham passado sem grandes sobressaltos!
A calma voltara aos sete reinos e nunca mais soubera nada de sua irmã de alma negra, Diávolla!
Mas desta vez algo se passava.
Cada vez que sentia mais forte os Ventos do Norte é porque algo de importante ia acontecer!
E nunca era nada de bom!
A última vez foi quando Adrianna morrera!

Diávolla - O princípio de um fim

Começou por umas leves impressões, depois a dor apareceu, foi aumentando e transformaram-se em cólicas!
Era isto que as mortais sentiam? Era isto a que chamavam dores de parto? Quando Diávolla decidiu ter um filho do mortal, contra todas as regras definidas pela Natureza, nunca pensara que iria sentir tanto sofrimento! E ainda estava a começar! Sentia-se a morrer! Aquele ser forte, sem receio de nada, corajoso e bravo, maligno e diabólico... estava em pânico quando começou a sentir as primeiras dores, quando se lhe rebentaram as águas! Resolveu caminhar um pouco para ver se sentia melhoras. Pediu a um dos seus guardas para chamar alguém que soubesse lidar com aquelas situações.
O morto - vivo obedeceu maquinalmente, indo chamar o que em tempos fora uma bela mulher e hoje não passava de uma alma condenada no abismo, que era aquele Reino atroz!
Mirianna, era o nome da criatura.
Pediu para Diávolla se deitar e disse para ir fazendo força!
O tempo foi passando, as dores eram intermináveis!
As contracções eram cada vez mais fortes! Já tinha cinco dedos de dilatação!
A cada contracção Mirianna pedia para fazer força! Diávolla sentia-se rebentar, explodir!
Suava como nunca suara. Nem sabia que as fadas suavam! Fez um último esforço que ela considerou sobre - elementar, já que nunca poderia ser sobre-humano porque ela não era humana, mas sim um ser elementar e... saiu!!!
Escorregou do seu interior, das suas profundezas para o exterior, para o mundo que os rodeava.
Mirianna, com o seu corpo em pedaços e a sua mente esfrangalhada nunca pensou sentir felicidade alguma vez desde que morrera e fora relegada para aquele mundo estranho que era a sua vida e a de todos os seres que morriam e eram relegados para ali!
Mas agora sentia, porque novamente colocou alguém no mundo. Uma criança, viva, naquele mundo triste e feio! E apercebeu-se que seu corpo não estava tão desfeito, tão feio, tão horrível! Era um sinal de que algo iria mudar para todos. Para ela também!
Quanto a Diávolla, ao agarrar a criança nos seus braços nunca pensou que iria sentir o que sentiu.
Pela primeira vez na sua longa vida... sentiu-se completa!

O início de um fim

Calma, muita calma. Descanso, repouso, quietude! Era tudo o que ela sentia. Uma grande paz de espírito e um vazio imenso. Mas repousante! Antes de morrer nunca pensara que fosse assim. Acreditava na vida depois da morte, sua religião o dizia, mas era muito diferente do que imaginara.
Quando teve o acidente de automóvel sentiu dor, muita dor, depois uma espécie de choque eléctrico muito intenso e... leveza, calma, felicidade. Viu uma luz. Viu-se num túnel negro com uma luz intensa ao fundo. Caminhou sem andar até ela. E... ficou em paz. No Paraíso dos Sentidos. Havia outros como ela e uma mulher estranha, bela, e com uma grande força espiritual. Todos lhe obedeciam. E ajudou-a a ter uma criança. Naquele mundo. Naquele estado. Naquela dimensão. E pela primeira vez além de sentir felicidade, conseguiu expressar a mesma com um sorriso!
Não necessitava de alimento. Era espírito e pertencia a algo superior. Algo que pensara vir a conhecer. Mas não o via, não o ouvia, apenas o pressentia e isso dava confiança. Talvez por isso tivesse aquela paz de espírito! Ou seria aquela mulher estranha que lhe dava aquela sensação! Não o sabia! Seria ela a mãe de Deus? Deus tinha mãe? Deus era uma mulher?
Na religião que professara antes de passar para aquele estado superior, acreditava no que estava escrito. No dogma de que quando morresse ia para junto de Deus e não necessitava de se alimentar para viver. Isso acontecia nesse momento. Os escritos estavam correctos. Também estava escrito o regresso ao estado terreno. O regresso aos entes queridos! Fazer parte integrante dele como uma grande família.
E nessa calma de espírito aguardava essa fase.
Passou muito tempo. Ou pouco. Poderia ter passado uma eternidade que ela não notaria. Onde se encontrava não havia o tempo como o ser humano conhecia! Tudo era vago.
Mas a mudança, a transformação não terminara. Assim o pensou.
Algo estava a suceder. Sentia-se no meio de um turbilhão. De ideias, de sentidos, de energia! Sentiu-se como que a perder os sentidos!
Acordou rodeada de negrume, escuridão. O pânico apoderou-se dela.
Viu que estava dentro de um caixão na penumbra. Regressara como sua religião o dizia!
Levantou-se e saiu do jazigo de família. Sentia fome, muita fome.
Caminhou até casa, era a poucos quilómetros dali!
Chegou. Chovia! Imenso!
Tocou à porta como o fez muitas vezes quando se esquecia das chaves no trabalho.
Nunca tiveram filhos. Não tiveram tempo para isso. Porque se recordara disso agora?
O homem veio ver quem era. Gritou de horror ao vê—la.
Tremeu e quase se urinou com o pânico.
Depois vendo-a toda suja, enlameada e magríssima, mas a sorrir, acreditou em milagres.
Por algo que não sabia explicar tinha sido enterrada viva. Morte clinica. Já tinha ouvido falar disso! Só podia ser isso.
As lágrimas correram pela sua face.
Puxou-a contra si chorando e gritando graças a Deus, abraçando-a como se fosse o último abraço.
Mirianna continuava a sorrir. E tinha fome, muita fome.
Começou pelos braços não sem antes se alimentar com o seu cérebro. Naquele último abraço. A religião dela estava certa.
Os entes queridos. Voltara para eles e ficariam para sempre com ela. Seriam parte integrante dela! Enquanto se alimentava chorava de alegria!
Lá fora no meio da chuva, outros recebiam de braços abertos os entes queridos que regressavam dos mortos.
A religião o previra. Era a Verdade Divina!
E Diávolla tinha iniciado o seu plano diabólico!

Tomo II (Continuação)

(...)
Estranhos tempos aqueles em que o defunto vagueia como ser vivo na terra que o alimentou.
Estranhos tempos aqueles em que o homem deixa de chorar por quem morre. Seja a mãe, o pai, filho, filha, mas traz sempre consigo uma arma na mão e um coração cheio de terror.
Estranhos tempos aqueles em que os monstros vagueiam de dia e à noite se ouve os mortos a chorar!
Estranhos tempos aqueles em que depois de morto se tem de morrer novamente. Estranhos tempos!
Serão os tempos do Apocalipse?
(...)

Era uma vez... a vida




Portugese Love Theme - Craig Armstrong

Era uma vez. Como muitas das vezes. Ou foi uma vez. Ou é. Depende da maneira de ver as coisas. Mas neste caso coloquemos “Era uma vez”.
Era uma vez uma jovem muito jovem apaixonada pela vida.
Não pela sua vida, mas pela vida em geral e tudo o que poderia dar de si! Apaixonou-se muito jovem pela vida e por alguém que seria uma parte importante na sua vida. Esse alguém correspondia à paixão. E para ele, ela era a luz dos seus olhos, o realizar dos seus sonhos, o culminar do desejo convertido em realidade.
Para ela, ele era o seu príncipe encantado. O amigo de todas as ocasiões. A mão que podia agarrar, o ombro em que podia chorar, a figura que a ouvia desabafar, a criança com quem podia brincar.
E também se amavam.
Eram muito jovens e viveram um para o outro desde muito cedo. As famílias acharam graça, nem aprovando, nem desaprovando.
E assim cresceram.
Juntos, unidos como se de duas almas gémeas se tratassem.
Já jovens adultos viram a hora de dar um passo importante nas suas vidas. Iriam colocar no papel o que eram quase desde que nasceram. O ser uma família, um casal.
E assim o fizeram. A partir daí ainda com mais força deram-se um ao outro, vivendo a vida, nem que fosse gozada simplesmente e apenas por eles dois, a sós na penumbra do quarto explorando os seus corpos, no sossego do lar passeando pelas suas almas, na acalmia do seu bairro correndo pelos jardins e ruas.
Mas faltava algo. Algo que representasse aquele amor que sentiam um pelo outro. O que sempre imaginaram. O que sempre desejaram. Ter um filho. Um filho que pudessem dizer em voz alta e com muito orgulho “É nosso, é o fruto do nosso amor”.
E assim foi. Colocaram em prática o desejo.
Mas a vida é feita de mistérios e esses, são mais fortes que o desejo.
Dias tentaram, meses forçaram, anos passaram... e o filho desejado não chegou.
Visitaram médicos, instituições, tudo tentaram e descobriram que o filho desejado não os poderia visitar. Tudo porque os seus corpos não permitiam.
Foram feitos um para o outro, isso tinham a certeza, mas a natureza não permitia que dessem frutos.
Foram designados para se amarem um ao outro e nada nem ninguém se iria interpor.
Nem um filho.
A tristeza cobriu os seus corações.
Ela, continuou a demonstrar a alegria pela vida mas por dentro tinha rios de lágrimas.
Ele, morreu a pouco e pouco e fechou-se num casulo feito de água de sal e tristeza. Deixou quase de falar e refugiou-se nos livros e no trabalho.
E ela apenas nos seus olhos, no fundo dos seus olhos via que ele ainda a amava.
Foram vivendo com essa tristeza e amargura. Sós, mas juntos. Tristes, mas com muito amor reprimido. Muito amor para dar!
Até que se lembraram de algo. Se não podiam ter um fruto do seu amor, ninguém lhes podia negar um filho não biológico, um filho afectivo.
Um filho deles!
E a esperança renasceu. O amor floresceu como flores de cerejeira brotando nas suas almas!
Iam adoptar uma criança. Uma linda menina. Teria no máximo quatro anos. Seria sã e seria a filha que sempre desejaram!
Uma menina que voltaria a dar alegria e conforto ao lar.
E esperaram!
Estava próximo. Que estivessem descansados que não tardava a receberem a desejada. Assim lhes diziam.
E os dias foram passando, os meses cavalgando, os anos sulcando... e a menina não apareceu. Não lhes foi entregue!
O que se passava? Porque não lhes era entregue a menina se era tão desejada, tão querida, tão amada?
Que não se preocupassem que ela havia de chegar, era um processo moroso, muita burocracia, muito problema em papel e tinta!
E assim foi o tempo passando , sem a alegria de uma criança.
A criança que sempre desejaram. Ainda eram eles crianças e já sonhavam com ela.
Rezaram, oraram, choraram e a criança nem com eles, nem com os Homens, nem com Deus.
Não vinha esta noite, não estava lá de manhã, não preenchia os dias vazios.
E ela voltou a ficar carregada de lágrimas escondidas, mas continuando a mostrar ao mundo que a vida nela não tinha morrido.
Ele novamente se fechou num casulo esperando que algo o tirasse de lá. Os transformasse em borboletas. Lhes dessem cor às suas almas apagadas e cinzentas.
Quando a esperança está quase a morrer há sempre um raio de luz que ilumina tornando os verdes mais fortes, mais brilhantes.
E esse raio de luz chegou numa manhã chuvosa, cinzenta e triste. Receberam uma chamada a informar que iriam receber a menina muito em breve. Que tivessem o seu quarto pronto, cheio de cor, brinquedos e amor, que ela estava a chegar.
E colocaram-se ao trabalho. Compraram latas de tinta de mil cores, brinquedos cheios de vida e libertaram o amor pela casa, pelas paredes, por todos os lados.
E esperaram... esperaram.... esperaram... e nada!
Ter-se-ia perdido algures nas suas vidas? Teria escolhido ter outros pais?
Ou eles, aos olhos de Deus, não deveriam ter mesmo filhos?
Sentiam-se a ser consumidos por dentro, tal a amargura!
E descobriram algo que não poderia ser descoberto! Algo que nunca deveriam ter sabido. A menina que eles tanto desejaram esteve mesmo à porta de sua casa, mas não entrou porque os médicos descobriram que a menina tinha uma doença muito grave. Tinha poucos meses de vida.
Deus preparava-se para a levar!
Mas porquê? Deus era tão cruel que tinha de colocar uma doença na criança só para eles não darem o amor que tinham para dar?
E as cores do quarto começaram a perder o brilho, a luz, a vitalidade. Os brinquedos deixaram de trabalhar, de funcionar. E novamente o amor se recolheu fundo nos seus corações.
Mas a promessa de receberem a criança mantinha-se.
E assim foram vivendo.
Com a tristeza e esperança ocupando cada cantinho dos seus corações, despedaçados pelo correr da vida, mas esperançados que ela estivesse ali, tão próxima que bastava estender a mão para ela a agarrar dizendo: Mãe, Pai, estou aqui. Sempre estive! E onde quer que eu tenha estado, sabia que me esperavam e... nunca deixei de vos amar!

(...) continuação (...)

Para o vulgar dos mortais era um bosque escuro e sombrio. Não eram raras as noites em que alguém, que se aventurasse pelos seus recantos não dissesse que vira figuras translúcidas a flutuar. Vultos de belas e estranhas mulheres cruzavam o horizonte dos seus olhares. Outros achavam que viam olhos negros, cavos, profundos a observá-los. Não era qualquer um que se aventurava nele de ânimo leve. Quem não tivesse o sangue dos Antigos não poderia ver a sua beleza. Era um local sagrado, temido ou adorado. Talvez por isso houvesse homens com poder, no Mundo dos Homens, que gostariam de o ver destruído para em seu lugar edificarem uma floresta de betão. Nunca o coração do Reino Sagrado estivera tão ameaçado como agora, nos tempos modernos. Uma dessas sombras no olhar do Homem era Laureanna. A ela apenas restava esperar que isso não sucedesse. Se o Homem decidisse tomar essa via, teriam que ser tomadas medidas. Medidas que seriam muito nefastas para os filhos de Adão. Longe ia o tempo em que ela e suas irmãs chegaram àquela região. Antigamente uma floresta densa onde só entrava os raios de luz filtrados pelas copas das árvores e pela forte vegetação, hoje um bosque limitado por construções humanas. E cada vez mais exíguo. O seu reino, mesmo sendo noutra dimensão era afectado pela crueldade dos homens perante a natureza mãe.

tentação (1ª parte completa)

Deixo-vos a primeira parte do conto "Tentação"
Espero que tenham gostado.
Espero que não tenha ofendido ou melindrado alguém. Não era essa a intenção.
Não passa disso mesmo, de um conto de ficção.

1. Triste é o mundo sem luz. Triste é a eternidade sem o amor. Triste são os homens que adoram imagens profanas. Ilusões simbólicas que personificam os seus pseudo deuses fictícios, imaginários, vis e mesquinhos! A carne é fraca, a alma é forte. Mas no corpo do homem a alma acompanha a carne. Torna-se fraca até ao dia da libertação. Até à hora da sua morte. Mas mesmo assim o filho de Adão sabe gerar criaturas divinas, belas, sensíveis, tentadoras. Mariah é uma delas!

2. Mariah, jovem mulher teve de deixar a sua casa muito cedo para acompanhar Joseph, homem feito, carpinteiro de profissão. Menina e moça sentia-se envergonhada na sua presença quase não falando duas palavras seguidas. Ele, mais velho quase cinquenta anos, respeitava-a e tratava-a com carinho. Não era normal nos homens daquele tempo que normalmente tratavam com desdém as mulheres, fossem elas mães, irmãs, ou suas mulheres como era o seu caso. Viviam numa casa típica de adobe e barro! Ela passava o tempo a tratar da horta e a cuidar da roupa e do alimento de seu homem. Joseph visitava potenciais clientes para arranjar algo fora do orçamento. Se bem que pouco necessitava disso já que os romanos eram o seu principal cliente. O exército preferencialmente. Todos os meses fazia cruzes de madeira para os suplícios. E era feliz. Desde que a sua amada morrera, pensou que iria envelhecer sem ninguém a seu lado. Mas Mariah, que ele tinha pegado ao colo quando nascera, não tinha pretendente. Os pais andavam desesperados ao ver que a filha, mulher já com catorze anos feitos ainda não era casada. Era extremamente bela e isso fazia com que os homens fugissem da sua beleza estonteante. Pele alva, branquíssima, para as mulheres daquele povo, daquela raça, olhos cor de mel, brilhantes e tristemente sedutores deixavam qualquer homem sem confiança. Por isso Joseph avançou. A beleza de Mariah não o hipnotizava já que o coração dele ficara para sempre com a mulher que o deixara para ir ao encontro do único Deus! Apenas queria alguém que cuidasse dele e o acarinhasse quando a força e vigor o começassem a deixar. Nada mais lhe pedia.

3. Observava-a em segredo, fosse de dia, fosse de noite. Nas sombras escondia-se admirando o seu corpo belo e escultural escondido debaixo de roupas que para ele não passavam de andrajos velhos e sujos. Tinha a capacidade de ver mais além, de ver o que aquelas roupas escondiam... e gostava do que via! Sentia-se atraído pelo aroma emanado por aquela filha de Adão, pela sua figura, pelas suas carnes...!
Anjo caído, vagueava pelo mundo dos Homens em busca do perdão de Deus, em busca da Salvação, do regresso ao seu Reino, ao Reino do Senhor, ao Reino do Amor. Mas para isso teria de praticar o bem, ajudar os necessitados e nunca causar mal ou dolo aos Filhos de Adão. Não lhe era permitido olhar para as mulheres, seres frágeis e proibidos por Deus. Sabia-o perfeitamente.
Outros houve antes dele que não resistiram e caíram na tentação da carne.
Antes de a ver, achava isso impossível... mas Mariah era uma enorme tentação!

4. Os dias passavam, as semanas corriam e nada de anormal se passava, sempre a mesma rotina, sempre a mesma vida.
E assim se fez um ano de casados aos olhos de Deus.
Mas Mariah sentia uma vontade estranha que não sabia explicar.
E com a vontade vinham pensamentos impuros.
E com os pensamentos impuros vinham os desejos!
Tinha vergonha de expor a sua mente ao marido por isso fazia de sua mãe, confidente. A mãe preocupada, por saber que Joseph nunca iria satisfazer Mariah como mulher, tentava tirar-lhe isso da cabeça.
Dizia que era o Demo a tentá-la e a filha ouvia e acreditava que assim era.
E Joseph nem reparava que a mulher precisava de algo mais que um sorriso, que um obrigado depois das refeições, que um até amanhã ao deitar.

5. Nessa noite, Mariah dormia só.
Joseph teve de se deslocar ao forte romano para recuperar uma paliçada e pernoitava por lá.
Já não era a primeira vez que dormia sozinha.
Mas naquela noite sentia-se diferente.
Estava calma, repousada e os pensamentos impuros que tinha constantemente não invadiam a sua mente.
Ouviu algo, ou melhor, pressentiu algo. Mas manteve-se estranhamente calma.
Apareceu do nada. Uma luz brilhante encheu a sua casa e da noite fez-se o dia.
Era belo. Estranhamente belo. Nunca tinha visto ninguém assim.
Com um aspecto andrógino, mas extremamente belo.
No ar estava um aroma impossível de definir. Aroma esse que a fazia sentir-se ainda mais atraída por ele.
Não sabia dizer quem ele era, nunca o tinha visto, mas no fundo da sua mente sabia o que ele era.
Um verdadeiro predador. E estava pronta para se entregar.
Ele sorriu, tocou com suas longas e experientes mãos no seu corpo, abriu as asas de Arcanjo e deitou-se sobre ela amando-a e servindo-se do seu corpo a noite toda!

Entretanto lá longe, Joseph dormia o sono dos justos depois de ter recuperado e erguido a paliçada romana. A seu lado descansava um soldado romano com as pernas entrelaçadas nas dele...
...não era só a paliçada que Joseph erguia aos soldados romanos desde que ficara viúvo...

6. O tempo passava e aquilo andava a roer por dentro. Tinha de falar com o marido antes que acontecesse uma desgraça. A mãe de Mariah sentia que, para bem da filha, tinha de fazer algo. Falou com o esposo e colocou-o ao corrente da situação. Ele ouviu, suspirou e acedeu, preocupado em falar com Joseph. Deslocou-se a sua casa e chamou-o. Intrigado, por seu sogro o visitar a uma hora de trabalho, foram vagueando pelas ruas da aldeia para poderem conversar.
O pai de Mariah, com algum receio, explicou que ela andava com sonhos impuros, eróticos, molhados e que necessitava urgentemente de um homem.
Ficou chocado com o que o seu sogro lhe dizia. Nunca pensara ouvir aquilo de sua boca. Mesmo não estando para aí virado, concordou. Explicou que nunca o fizera porque Mariah era apenas uma companhia doce e terna. Nunca olhara para ela como uma mulher necessitada do toque carnal de um macho! Mas aceitava as razões do sogro e ia fazer o papel que lhe cabia no leito conjugal.
Pelo menos ia tentar, pensou!

7. A noite estava quente. A luz da lua e de milhares de estrelas faziam com que a noite parecesse dia.
Esperou que chegasse a hora de deitar.
Quando se recolheram ao leito, ambos disseram que queriam falar um com o outro.
Ela nervosa, enrubesceu e ele apenas sorriu.
Como mulher, obediente e respeitadora como era hábito e tradição naqueles tempos, silenciou-se e esperou que seu marido dissesse o que tinha a dizer.
Explicou-lhe que falara com seu pai.
Ela foi ouvindo. E quanto mais ouvia, mais um esgar de pânico se assomava na sua cara.
Ao vê-la em pânico, tentou acalmá-la, pensando que estava assustada por ter de se deitar com ele como amante. “Não te preocupes, Mariah, não te magoarei e não farei nada contra a tua vontade. Se não quiseres, podemos fingir que aconteceu!” “Não é isso, Joseph, meu senhor.” “Então o que se passa?” “Acho que estou... grávida!”.
Joseph a principio ficou quedo e mudo, tendo o sangue desaparecido da sua face.
Até que começou a enrubescer, a ferver, a enraivecer. Um grito de raiva saiu da sua garganta, tirou o cinto selvaticamente da cintura e chicoteou-a até não ter força nos braços.

8. A manhã nasceu com Mariah agonizando no chão de sua casa. Estava mais uma vez só, mas desta vez por razões diferentes. A sorte dela é que o cinto de Joseph era de pano enrolado e não de pele. Mas mesmo assim, com a violência e cadência brutal que ele dera às chicotadas ficou com o corpo todo negro e vergastado. A reacção dela foi de instinto maternal. Protegeu o seu ventre encolhendo-se formando como que uma bola, recebendo as vergastadas nas costas, na cabeça, nas nádegas, nas pernas. Quando Joseph se cansou, sentindo-se impotente chorou que nem uma criança e saiu de casa ainda a noite ia alta indo em busca de consolo nos braços do soldado romano.

9. Já o dia ia a meio quando Joseph regressou. Ela não se tinha mexido. Cheia de dores ficara queda e muda, no chão frio e empoeirado de sua casa.
Joseph agarrou-a como se de um bebé se tratasse e colocou-a na cama.
Vinha diferente. Já tinha perdido a raiva, aparentemente, mas a sua cara ainda estava sulcada com o rio de lágrimas que deitara. “Peco desculpa, Mariah. Agi sem pensar. Devia saber que após um ano de casados e sem cumprir como homem irias buscar o que não tinhas, fora de casa” “Mas...” “Shhh, silêncio! Deixa-me terminar!” Disse Joseph fazendo com que Mariah se encolhesse toda com receio que a raiva voltasse ao seu homem. “Como a culpa foi minha eu aceito!” “O que aceitas, Joseph?” “A criança. Aceito a criança como se fosse minha. Não te vou repudiar aos olhos do povo porque senão, eras repudiada por todos, ou mesmo lapidada. Repudiar-te-ei somente eu, em segredo. Aos olhos de todos manteremos a mesma atitude. Mas no interior do lar dormiremos separados e não me dirigirás a palavra. A criança quando nascer será tratado como se meu filho fosse. Só quero saber uma coisa. Quem foi? Alguém que conheça? Um estrangeiro? Um... um... romano?” “Não sei!” disse Mariah “mas era extremamente belo... e tinha asas, como um anjo!!!” O silêncio abateu-se entre ambos...

10. Sentia-se quente, protegido, alimentado. Doce sabor, o do liquido que corria alimentando-o. Doce o fluxo que percorria o corpo que o protegia, fluindo pelo útero, na placenta, chegando a ele, morno e delicioso. Mesmo em fase embrionária já tinha uma consciência, uma alma, um sentido de vida. Sabia que aquela segurança não seria para sempre. Estava próxima a hora de nascer. Mas aquele doce sabor! Era irresistível!

11. Joseph não compreendia porque sua mulher mentia! “Como era possível?” pensava ele. Julgava ela que era néscio? Provavelmente fez o que ele já fazia há muito. Deitar-se com os romanos. ”Louca, era uma louca! Se fazia isso, porque falou com os pais? Devia ser para se deitar comigo, seu marido e assim disfarçar o seu pecado” Assim pensava ele. Mariah dormia profundamente quando uma pequena luz entrou no quarto. Assustado Joseph deu um pulo da cama e agarrou num pau, pensando que fosse uma espécie de insecto desconhecido para ele! O que seria aquilo? Pensava ele. Nesse momento a luz aumentou iluminando o interior da casa como se fosse de dia.
À sua frente apareceu ele! Sempre era verdade o que Mariah dissera! Era mais belo do que imaginara e exalava um perfume difícil de definir. Era algo que parecia fazer o mesmo efeito que o mel faz às moscas. “Joseph” disse ele, mas a sua boca não se movia, a voz que ouvia era dentro de sua mente. Quem era ele? Um anjo? Um demónio? As duas coisas? Deus? Algum Ente Superior? “Joseph, presta atenção. Mariah não estava a mentir. Nunca mais lhe toques como fizeste na noite anterior! Protege-a e a seu Filho e serás recompensado” “Mas quem sois? Um anjo? Um Espírito Santo?” “Chama-me como quiseres. Mas ouve e faz o que digo. A criança será a escolhida. Serás o princípio de uma Nova Era. E tu foste escolhido para seu pai na terra.” “Perdoai a minha ignorância e a minha curiosidade Senhor. Nunca pensei que Anjos se deitassem com mulheres!” “Há muita coisa neste mundo e no outro que o Homem não sabe! Limita-te à tua ignorância e pequenez. E ouve o que te disse” “Sim meu Senhor. E a minha recompensa? Falaste que seria recompensado!” “Sim, não te preocupes. Vais ter a tua recompensa.” Sorriu, tocou com suas longas e experientes mãos no corpo de Joseph como o fez com Mariah, abriu as asas de Arcanjo e deitou-se sobre ele! Entretanto, Mariah dormia profundamente a poucos metros deles!

12. Quando foi chamado uma onda de alegria invadiu o seu corpo!
Sabia que tinha cometido pecado. Sabia que poderia ser transformado em energia cósmica deixando de ser o Arcanjo, filho do Senhor, que era.
Mas ser chamado à Sua presença, após ter sido relegado para o mundo terreno dava-lhe esperança de regressar ao Éden.
O Senhor chamou-o, repreendeu-o, mas já tinha na mente um plano concebido. O Homem, fruto de uma experiência sua, tinha chegado a um momento fulcral da evolução como raça e devia ser tido em conta essa situação. Teria de fazer algo para que não perdesse a devoção do ser humano. E que não se voltassem para outros deuses. O Anjo caído, sem o saber, criou a oportunidade para que isso acontecesse. Já estava escrito no Livro do Destino. Mariah iria ter uma criança. Aos olhos do Homem, Mariah estaria imaculada, pura, virgem, porque nenhum olhar humano conseguiria ver o que um Arcanjo faz ao corpo de ser humano caso se deitem juntos no mesmo leito. Ele, anjo caído, Filho de Luz, Filho do Senhor era feito à sua imagem. Sendo assim ele era o Pai Celestial da criança, concebida através do Filho da Luz, Espírito Santo, Arcanjo do Senhor.
E a criança seria varão e começaria uma nova Era.
Mas mesmo ele, Senhor Celestial, não tinha meios de ver que poderes teria essa criança, fruto de uma mulher e de um Ente Celeste!

13. Nessa noite, Mariah e Joseph, foram novamente visitados pelo Filho da Luz, pelo Espírito Santo. Foi-lhes transmitido o que teria de ser feito. E assim ficaram a saber que Deus estava por detrás daquele acontecimento. Que Mariah estava nas graças do Senhor. O Ser de Luz teve de se conter para, após ter dado a Nova, não se lançar no corpo tentador de Mariah! Sabia que se o fizesse, desta vez Deus não o perdoaria.
Por seu lado, Joseph sentia-se tentado a ofertar seu corpo ao Ser de Luz!
Mas não sabia o que Mariah faria se descobrisse o seu segredo!
Nessa manhã pensaram ambos que sonharam. Contaram o “sonho” um ao outro e deslocaram-se a casa dos pais de Mariah para contar a Boa Nova! Explicaram o sucedido. A mãe de Mariah certificou-se e confirmou que a filha ainda era virgem! Todos se ajoelharam perante Mariah e rezaram a Deus!

14. Herodes era um rei poderoso. Pelo menos até aquele povo ter chegado. Fortes, poderosos, guerreiros, os Filhos da Loba subjugaram-no, transformaram-no num dócil cordeiro. Ainda se sentia um Rei com poder. Mas a mando de Roma. Nada conseguia fazer para os afastar das suas terras, por isso, declarou lealdade a Roma e tornou-se cidadão honorário. Como os filhos de Loba, Herodes gostava da carne. Dos prazeres e da tentação da carne. Prazeres esses trazidos pelo invasor estrangeiro para o seu território. Não podia ser tudo mau. Não havia noite que Herodes não passasse em orgias de sangue e sexo culminadas por um grande banquete onde ingeriam todo o tipo de iguarias! A sua preferida era a carne tenra de crianças do povo. Não havia sabor igual!

15. Já corria de boca em boca a vinda do Messias. Rezava uma velha lenda que haveria de chegar o Filho de Deus para expulsar o invasor estrangeiro e se tornar o rei de uma nova nação, de uma nova era. O boato começou quando Joseph, inadvertidamente, deixou escapar a situação numa das noites em que se deitou com o romano, soldado esse que tinha sido recrutado entre o povo daquele lugar. Não foram necessárias mais de 24 horas para que todos soubessem que algo estava para acontecer. E o boato chegou aos ouvidos de Herodes. Uma ameaça ao seu trono estava para breve!
E o jovem romano, crente nas tradições do seu povo, despojou-se das suas armas e roupas tornando-se o mensageiro da Boa Nova, espalhando aos ventos a chegada do Messias.
Numa noite em que ia a regressar a casa, cansado de pregar a Boa Nova, foi cercado por puros soldados romanos, que o reconheceram como tendo sido um deles.
A Lua estava cheia e a fome brilhava nos olhos dos guerreiros.
O Profeta ainda tentou esboçar a defesa, mas os Filhos da Loba caíram sobre ele, quais metamorfos esfomeados, não deixando nada do seu corpo. Saciados, regressaram ao forte sem que ninguém se tivesse apercebido de tal.

16. Herodes não gostava nada disso. Quis saber quem eram os pais da criança que tanto se falava. Ouvira dizer que era filho de um carpinteiro e de uma doméstica. Mas Joseph já calculava que algo iria acontecer e resolveu pegar na sua mulher e fugiram em busca da vida de seu filho.

17. Era apenas uma lenda. Um homem que nasceria de uma virgem e que seria concebido por um espírito, por um ser de luz. Esse Homem metade humano, metade divindade, seria o Rei dos Homens.
Mas essa lenda estava escrita no Livro do Destino. Era um livro em branco, no qual aparecia escrito, como que por artes mágicas, o que de importante iria acontecer na história da Humanidade. Quem o possuía sabia que só existia aquele livro e outro que era impossível de adquirir já que estava com o próprio Deus dos Homens.
Aquele tinha sido oferecido a Adão, antes de provar o pecado original. E era Belchior que o tinha. Graças ao livro, ele e seus dois irmãos governavam grande parte da que seria no futuro chamada de Ásia Central.
Eram seres muito antigos, meio homens, meio humanos. Seres poderosos que se movimentavam entre a Humanidade há séculos. Seres extremamente sábios e que podiam ter tudo o que queriam. Eram conhecidos pelos Reis Magos, dada o seu poder sobrenatural e a sua clarividência para prever o futuro. Tal como Jesus, nome escrito no Livro do Destino, eles eram filhos do homem e de seres de luz, viam no nascimento do Filho de Deus o surgimento de uma era em que eles se tornariam senhores do mundo.

18. A caminhada já ia longa. Apenas viajavam de noite para que ninguém desse por eles. Além de que de noite era mais ameno.
Joseph, dado o seu trabalho, conhecia quase toda a gente. Desde a ricos nobres a ladrões de estrada. Por isso se sentia confiante e em segurança pelas estradas, de noite. O problema eram os homens de Herodes, que procuravam algum sinal do nascimento do Menino ou alguém que lhes indicasse a mulher que estaria grávida do suposto Messias.
O dinheiro era pouco. Mal dava para se alimentarem em condições. Alugar um quarto ou contratar uma curandeira para o nascimento da criança era impensável.
Estavam às portas de Bethleém e tinham de arranjar um local para ficar, urgentemente. O tempo estava a terminar. Mariah poderia ter o bebé a qualquer momento.

19. Chegaram a uma gruta. Um local escuro e húmido que era usado por algum pastor para guardar os seus animais.
Desviou as pedras que tapavam o caminho e entrou com Mariah e o jumento que a transportava.
Fez uma cama com o feno que estava guardado no fundo da gruta.
Alguns animais que lá se encontravam remexiam-se e emitiam ruídos de incómodo e de receio por causa da presença daqueles estranhos!
A noite continuava iluminada.
Ele tinha de fazer o parto com o pouco que tinha à mão.
Já tinha observado como se procedia. Mas como homem nunca o tinha feito.
Mas sabia que Deus não o deixaria mal.
Mariah adormeceu, cansada da viagem.
Enquanto a observava muitas coisa lhe passou pela cabeça.
Tinha ali a oportunidade de se livrar daquele incómodo. De um filho que na verdade não era seu. Da vergonha que seria se alguém descobrisse que a criança não era da sua carne. Mesmo sabendo que era Filho de Deus. Mesmo sabendo que poderia ser castigado para toda a eternidade só por ter aquelas imagens na sua mente!
Ninguém sabia que estavam ali. Ninguém iria saber que teria sido ele a matar Mariah e o rebento que ela carregava.
Enquanto tinha esses pensamentos impuros, instintivamente sua mão agarrara uma pedra.
A loucura estava a apoderar-se dele!


20. Nesse instante uma estrela riscou o céu e estranhamente ficou a pairar por cima da gruta.
A suposta estrela libertava uma luz que acalmou os animais e a eles próprios.
A loucura de Joseph desapareceu por milagre!
Mas agora tinha receio que aquela luz atraísse visitantes indesejados.
Entretanto uma caravana passava à entrada da gruta. Joseph ficou assustado.
Das sombras observou a pequena multidão nas carroças.
Nenhum deles parecia se aperceber da luz!
Da estrela!
Era um sinal de Deus, Joseph soube-o naquele momento.
Era um sinal de Luz.
Entretanto no cimo da gruta o Anjo Alado tudo observava, emitindo uma luz calma e relaxante para que se sentissem confortáveis. Parecia uma estrela, tal o seu brilho!

Sabiam onde ia nascer. Estava escrito no Livro do destino. Partindo com um séquito enorme, tinham como destino a pobre Bethleém. Sabiam que quando chegassem ao local, haveria algo que seria como que um sinal. Algo que lhes diria que era ali que estava Jesus, o Salvador!
Partiram atempadamente. Sabiam que tinham de percorrer estradas e lugares inóspitos durante semanas, para lá chegar. Talvez até meses.
Mas se o Livro estivesse correcto valeria a pena.
Levavam prendas. Presentes que seriam importantes para o momento. E simbólicos. Cada um dos presentes representava algo místico.
Levavam ouro, incenso e mirra.
Se não fossem as oferendas, teriam viajado sós e chegariam em poucas horas ao local, dado os seus poderes. Mas tão carregados como estavam não podiam prescindir do séquito.

Nesse momento rebentaram as águas de Mariah.
Joseph adormecera com a calma emanada pelo Espírito Santo.
E Mariah, incrivelmente, também dormia!
Quando acordaram o nascimento já tinha sido consumado!
Ele nascera e dormia nos seus braços.
Joseph acordou e ficou maravilhado com o estranho halo de luz que irradiava do corpo do menino.
Entre eles encontrava-se um pastor.
Tinha chegado enquanto dormiam. Ficara admirado ao ver estranhos na gruta onde guardava os animais.
E assistiu a tudo!
Nunca disse o que vira, porque perdera o dom da voz!
Mas o que viu maravilhou-o! E fê-lo acreditar no Filho de Deus!

Entretanto os reis magos chegaram. Vinham sós, sem o séquito para não levantar suspeitas!
Tinham estado na noite anterior a pernoitar no palácio de Herodes.
O Rei quando soube da chegada deles fez questão em recebê-los.
Encheu-os de mordomias só para lhes poder tirar a confissão de onde o Filho de Deus ia nascer.
Mas os Reis Magos, que já tinham ouvido falar de Herodes e sua crueldade, não se deixaram enganar.

No dia seguinte partiram como se fossem explorar aquela terra distante, levando apenas meia dúzia de criados.
Disfarçados nos alforges, levavam o ouro, incenso e mirra.
Herodes deu ordens para que os seguissem.
Mas estranhamente os soldados foram numa direcção oposta à dos Reis Magos!
Eles já sabiam que Herodes ia persegui-los, por isso, por artes mágicas ludibriaram os seus perseguidores!

Já era noite quando chegaram à gruta.
Viram o Espírito Santo a iluminar o local do Filho Divino!
Joseph e Mariah tiveram algum receio quando os viram chegar, mas Belchior disse para que nada temessem.
Apenas iam para adorar o Filho de Deus e deixar oferendas.
Nunca se soube o que disseram ou o que falaram, mas após a visita do Reis Magos, a Família seguiu na direcção do Egipto.
Levaram as oferendas com eles, junto com os criados que as traziam.
Herodes ainda mandou matar todos os recém nascidos para que o Filho de Deus fosse com eles, mas o que apenas conseguiu foi carne para as suas vis orgias de sangue.
E durante trinta anos ninguém soube o que era feito do carpinteiro Joseph e sua mulher.
Ainda se comentou que teria matado Mariah, escondera seu corpo e fugira para o Egipto.
Mas eram só boatos.
Durante trinta anos a profecia voltou a cair no esquecimento.
Até à chegada de um belo e sábio jovem com a sua família.
Seu nome era... Afonso!